A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, vencido apenas o ministro Edson Fachin, autorizou à defesa do ex-presidente Lula acessar as mensagens trocadas entre os Procuradores da República e o ex-juiz Sérgio Moro no aplicativo Telegram. A grande questão era decidir se a defesa de Lula poderia ter acesso as provas obtidas ilicitamente pelos hackers e divulgadas pelo site Intercept.
De início há que se destacar, por oportuno, que a decisão do STF não tem o condão de anular, ainda, as condenações do ex-presidente, mas demonstrada a autenticidade das mensagens trocadas pelos procuradores e Moro a anulação será inevitável.
Há ainda que se destacar, para espantar qualquer dúvida dos desavisados e dos processualistas penais de botequim, as provas obtidas ilicitamente não podem servir para condenar os envolvidos, ou seja, os crimes de tráfico de influência, prevaricação, abuso de autoridade, etc., eventualmente cometidos por Sérgio Moro e seus meninos de Curitiba, não podem ser considerados provados com base nos elementos obtidos pelos hackers. Todavia, podem ser usados, pelo princípio constitucional da proporcionalidade, adotados por todos os países civilizados do mundo, para absolver Lula.
Dessa forma, mais uma vez, tal como ocorreram em inúmeras operações midiáticas, por exemplo, na Castelo de Areia que discutia o propinoduto de empreiteira para ganhar grandes obras, toda a investigação pode cair por terra pela megalomania de alguns integrantes do Poder Judiciário e do Ministério Público.
Voltando a questão julgada no último dia 8 de fevereiro, o ministro Gilmar Mendes, acompanhando o relator, com tintas fortes, descreveu com precisão cirúrgica a angústia de muitos ao lerem os descalabros supostamente cometidos pela equipe capitaneada por Deltan Dellagnon e Sergio Moro:
“A extrema gravidade dos acontecimentos perpetrados exige que se confira à defesa o direito de impugnar eventuais ilegalidades processuais que se projetam como reflexo da atuação coordenada entre acusação e magistrado, o que é objeto inclusive de uma questão que está posta para decisão na Turma".
E segue o ministro: “Ressalta-se que, até o presente
momento, a defesa do reclamante tem procedido a análise de apenas parte do
material contido nos autos da Operação Spoofing. De uma análise perfunctória de
certa de 4,6% (quatro virgula seis por cento) do material composto pelos
diálogos havidos no aplicativo Telegram, porém, já é possível depreender o
funcionamento de um conluio institucionalizado e perene composto pelo ex-Juiz
Sérgio Moro, pelos ex-membros da Força-Tarefa da Operação Lava-Jato e pela
Polícia Federal em Curitiba.
Tal conluio era articulado com o objetivo permitir a troca de informações fora
dos veículos oficiais e o alinhamento do jogo processual para além dos limites
legais do processo penal brasileiro.
Dentre os diversos trechos que apontam para o funcionamento desse núbio espúrio
entre órgão de acusação e magistrado, sobrelevam-se diálogos que demonstram que
a acusação adotava estratégias sub-reptícias que prejudicavam a defesa do
reclamante nos inquéritos e ações penais, ora com a aquiescência do juiz, ora
sob no cumprimento de expressas ordens do magistrado.”
Ministro Gilmar com a coragem e o sentido de Justiça que o acompanham durante sua trajetória na Suprema Corte, compartilhou em seu voto trechos que causam náuseas até aos inimigos do presidente Lula, senão vejamos:
“Em fevereiro de 2016, quando o reclamante ainda estava sendo investigado em inquérito policial, o ex-Juiz Sérgio Moro chegou a indagar ao Procurador da República Deltan Dallagnol se já havia, da parte do Ministério Público, uma “denúncia sólida o suficiente”. O procurador responde apresentando um verdadeiro resumo das razões acusatórias do MP, de modo a antecipar a apreciação do magistrado”
Gilmar Mendes traz ainda em seu voto a explica que Deltan Dallagnon faz sobre a tese que o MPF de Curitiba vai usar para denunciar Lula:
“Na parte do crime antecedente, colocaremos que o esquema Petrobras era um esquema partidário de compra do apoio parlamentar, como no Mensalão, mas mediante indicações políticas usadas para arrecadar propina para enriquecimento ilícito e financiamento de campanhas. O esquema era dirigido pelas lideranças partidárias, dando como exemplo JD e Pedro Correa que continuaram recebendo mesmo depois de deixarem posição. Com a saída de JD da casa civil, só se perpetuou porque havia alguém acima dele na direção. Ele tem ampla experiência partidária, sabe como coisas funcionavam, amplificada com o conhecimento do esquema mensalão, e sabia que empresas pagavam como contraprestação e não simples caixa 2. Mais uma prova de que era partidário é o destino do dinheiro da LILS e IL, para integrantes do partido. Estamos trabalhando a colaboração de Pedro Correa [...]”
Ora, só por esse trecho do voto do ministro Gilmar, extraído dos elementos de prova constante dos autos do processo que apura os crimes cometidos pelo hackers, demonstrada a autenticidade das mensagens, vislumbra-se uma promiscuidade inimaginável entre um juiz (parte necessariamente imparcial no processo) e o órgão de acusação. Senhores, essas autoridades públicas, repito, comprovadas a legitimidade e autenticidades das mensagens, brincavam com a vida de pessoas como se estivessem em um jogo de tabuleiro. E pior, mudavam as regras do jogo para ganhar sempre e a qualquer custo. Isso é Justiça? Isso é respeitar o Estado Democrático de Direito? Isso respeitar a ética profissional?
Somente haverá um processo penal justo quando for preservada, integralmente, a paridade de armas, impedindo o jogo de cartas marcadas e a seletividade de provas. O que se observa dos brilhantes votos dos ministros Ricardo Lewandowisk, Carmen Lúcia e Gilmar Mendes é que na 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba o sistema inquisitorial era o que imperava. Nesse sistema, em apertada síntese, a figura do acusador e do julgador se confundem e as armas de defesa são alijadas, preteridas em busca de uma “verdade” preconcebida pela acusação. O melhor exemplo para demonstrar a regra do processo penal da Lava Jato é a do arqueiro que primeiro lança a flecha e depois corre pintar o alvo!
Um exemplo da confusão da figura do Juiz Federal e dos Acusadores do MPF-PR está no seguinte trecho do voto do ministro Gilmar Mendes:
“A prática de combinar o jogo processual rendia a celeridade processual quando assim fosse de oportuno para a acusação ou para o próprio julgador. Em investigação específica envolvendo o ora reclamante, Deltan Dallagnol e Sérgio Moro combinaram pari passu o levantamento do sigilo de diligência de busca e apreensão solicitada pela Polícia Federal.
Pelo contexto, é possível depreender que o sigilo era referente a um pedido de busca e apreensão contra Lula a ser executado em depósito do Banco do Brasil no centro de São Paulo em que seriam acondicionados pertences do reclamante. Em 11 de março de 2016, o juiz proativamente procurou o Chefe da Força-Tarefa para combinar o levantamento do sigilo dessa medida cautelar, asseverando:
11 MAR 16
15:58:17 [Moro] Caro. A PF deve juntar relatório preliminar sobre os bens
encontrados em depósito no Banco do Brasil. Creio que o melhor é levantar o
sigilo dessa medida.
16:03:20 [Moro] Abri para manifestação de vcs mas permanece o sigilo. Algum
problema?
17:20:53 Deltan Temos receio da nomeação de Lula sair na segunda e não podermos
mais levantar o sigilo. Como a diligência está executada, pense só relatório e
já há relatório
preliminar, seria conveniente sair a decisão hoje, ainda que a secretaria
operacionalize na segunda. Se levantar hoje, avise por favor porque entendemos
que seria o caso de dar publicidade logo nesse caso.
17:25:28 [Moro] Bem já despachei para levantar. Mas não vou liberar chave por
aqui para não me expor. Fica a responsabilidade de vcs.
17:26:19 [Moro] Meu receio são novas polemicas agora e que isto tb reverta
negativamente. Mas pode ser que não.
17:51:33 Deltan: vamos dar segunda, embora fosse necessária a decisão hoje para
caso saia nomeação (eDOC 178).”
Ministro Gilmar concluiu: “A postura do juiz se dava no direcionamento do próprio poder de provocação do MPF por fora autos e em geral perante instâncias – como o STF – em que o ex-juiz federal não tinha acesso.”
Não há dúvidas de que o comportamento dos procuradores da república de Curitiba e do ex-juiz Sérgio Moro, comprovada a autenticidade das mensagens, afronta o devido processo legal e levará a anulação do processo.
Mas uma questão a que ser levantada: será que esse absurdo aconteceu apenas na Lava Jato? Será que promotores de justiça e juízes de direito de comarca pequenas no interior no país, cuja salas são no mesmo prédio (fórum), as vezes parede-meia, tem a mesma “troca de ideias” antes de pedir e decretar uma medida invasiva como as busca e apreensões e prisões preventivas? Será que são analisados os elementos informativos para a decretação de tais medidas ou bastam as “trocas de ideias”? São perguntas que nascem dos comportamentos descortinados pelas mensagens vazadas dos integrantes da força-tarefa de Curitiba.
No dia em que foi deflagrado a 9ª fase da Lava Jato, “Operação Juízo Final”, o decano da força-tarefa, Fernando dos Santos Lima, vaticinou em rede nacional:
“Hoje é um dia republicano. O Ministério Público está aqui neste momento com a PF e a Receita dizendo que não há rosto e nem bolso na república. Todos nós somos iguais. Todos os que cometem algum tipo de ilícito devem responder igualmente”.
Dr. Fernando será mesmo que “não há rosto” na República? Será mesmo que “todos somos iguais”? Será mesmo que “todos os que cometem algum tipo de ilícito devem responder igualmente”? Por fim, será que o comportamento, demonstrada a autenticidade das mensagens, de vocês da força-tarefa foi ético, moral e lícito? Não podemos aceitar que impere o adágio do que o “fim justifica os meios”, porque uma hora a conta dessa atrocidade bate à sua porta.
Marcelo Aith é advogado especialista em Direito Público e professor convidado da Escola Paulista de Direito (EPD).