Abro a coluna com um pouco de riso, com esta historinha do Jânio Quadros.
Obrigado, colega
O próprio presidente Jânio Quadros, às vezes, transmitia seus bilhetinhos para os ministros por meio do aparelho de Telex que mandou instalar em seu gabinete, ligado diretamente com os ministérios em Brasília e no Rio de Janeiro. Ele mesmo datilografava os "memorandos". Transmitiu ele um bilhete para um ministro e na mesma hora recebeu a seguinte resposta, pelo telex: "Prezado colega. Não há mais ninguém aqui". Ao que o presidente respondeu: "Obrigado, colega. Jânio Quadros". Do outro lado do fio, porém, o outro não se perturbou: "De nada, às ordens. John Kennedy...".
(Nelson Valente, jornalista e escritor, em seu livro Jânio Quadros - O Estadista)
O homem e suas circunstâncias
A expressão com sua hipótese é do filósofo espanhol Ortega Y Gasset (1883-1955). Do começo ao fim da vida, o homem navega por um oceano de aprendizado. Está sempre em mudança. E daí emerge o conceito de que a verdade depende de cada um. Nunca esse axioma foi tão recorrente. O ritmo de mudanças vivenciado no planeta é acelerado. Nos campos tecnológico, biogenético e de sondagem sobre a natureza do universo, os avanços são extraordinários. O que não se pode dizer na área dos valores. Este escriba aprecia fazer leituras sobre esse pano de fundo. O que está ocorrendo, onde iremos parar com o gigantesco volume de conflitos na sociedade?
As circunstâncias entre nós
Pois é, o Brasil desta semana é diferente do país de uma semana atrás. As circunstâncias nos levam a lembrar que:
1. Atingimos o pico da pandemia, com os índices mais avassaladores desde seu início. O colapso das estruturas de hospitais é geral. Mortes e internações sobem ao cume da montanha.
2. Mesmo assim, certo amortecimento impregna a alma social, a indicar a conformidade e a resignação ante esse clima de devastação.
3. A taxa de autoritarismo do governo, com a intervenção no comando da Petrobras, chega também ao auge, fazendo derreter resultados positivos que marcavam determinados setores.
4. A Petrobras teve o segundo maior tombo de sua história, com o derretimento de R$ 102 bilhões de seu preço de mercado.
5. O governo coleciona, esta semana, críticas ácidas sobre seu desempenho, chegando ao momento mais conflituoso de sua gestão.
6. Avoluma-se o teor crítico sobre a cooptação do presidente junto aos militares, com evidente prejuízo à imagem das Forças Armadas.
7. A imagem de governantes, em todos os Estados, começa a descer o despenhadeiro sob a aceleração dos índices pandêmicos.
8. O mercado dá recados concretos ao presidente, já desconfiado de sua ideologia liberal.
9. A perplexidade se volta também para o ministro Paulo Guedes, que não está conseguindo segurar suas intenções e seus amigos.
10. A desconfiança e o descrédito avançam celeremente.
Voltemos ao plano global das mudanças em curso no planeta.
A escala de valores
Tendo como mote a moldura das mudanças no campo dos valores, permito-me retomar a leitura, que sempre faço, sobre o espírito do tempo. Muda o planeta, Marte recebe a visita de três artefatos da Terra; Joe Biden assina decretos anulando políticas de Donald Trump; este continua a fazer campanha eleitoral, mesmo recolhido em seu resort; a Europa debate seu futuro e a gestão da pandemia, que consome milhões de vidas e trilhões de dólares das economias mundiais; a China sempre de olho no ranking das maiores economias mundiais; sinais de esperança no campo da imunização.
A espetacularização
A desideologização, que impregnou os sistemas políticos no século XX, amalgamando partidos, esfacelando os mecanismos clássicos da política - engajamento das bases, firmeza das oposições, grandeza dos Parlamentos, harmonia e independência dos Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) - mudou os rumos da democracia. Os entes coletivos cedem lugar ao individualismo. Ressurgem os perfis populistas, demagógicos, que atuam sob a perspectiva do EU sobre o NÓS. Pessoas tomam o lugar de partidos. Nesse eu voto, diz o eleitor. E a força do personalismo resgata o conceito de política como espetáculo. O ator político está no palco, usando sua arte manipulativa para engabelar as massas e expandir o descrédito geral, que se espraia na base, no meio e no cimo da pirâmide social.
Os figurantes
Os figurantes usam a linguagem da oportunidade. Cobertor social, cestas básicas, auxilio emergencial, demissão sumária de figuras da administração, eleição de personagens identificados com o selo "pagou, levou". Salvadores da Pátria, heróis de coragem, justiceiros, pais da pátria e suas bandeiras: combate à corrupção, defesa do patrimônio nacional, defesa do Estado-liberal, de um lado, e defesa do Estado-patrimonial, de outro. A receita de uns e outros.
O ódio
O ódio passa a ser destilado nas fontes de apoio - bases e simpatizantes - e distribuído em imensos jorros pelas redes sociais e nos contatos entre interlocutores, que queimam velhas amizades em nome da defesa de seus "heróis-patrocinadores". Pessoas de quem se imaginava terem uma cota mínima de racionalidade embarcam nas caravanas da bajulação. A convivialidade, que se apresenta como grau elevado do estágio civilizatório, vai para o buraco. As correntes do ódio assumem posicionamentos que mais se assemelham à volta da barbárie sobre o planeta.
O velho habitat
O mundo, até pouco, era carimbado como aldeia global. Todos por um, um por todos. Vimos, maravilhados, a quebra de fronteiras físicas e espirituais, com a ascensão de pobres e necessitados ao banquete dos ricos. Grandes nações acolhiam imigrantes. Davam-lhes teto e comida. E o que temos visto hoje nos quadrantes do planeta? O isolamento. O fechamento de fronteiras. Filhos pequenos separados dos pais. Renasce a noção de que a pátria é nossa. Não de estranhos. Cada nação com sua gente. Os pobres? Que fiquem onde nasceram. P.S. Lembrete histórico: conta-se que o marechal Erwin Rommel, a raposa do deserto, ao contemplar em cima de um morro os aliados destroçados por seus panzers no norte da África, teria dito: "os pobres nunca deveriam fazer guerra". Os pobres, como pensa Trump, deveriam voltar ao seu velho habitat.
O consumo da informação
A pressa, a rapidez, a competição desvairada em um mundo de carências crescentes impedem que a natureza seletiva do homem exerça sua função de enxergar conceitos de certo e errado, viável e inviável, justo e injusto. A abundância informativa acaba entupindo os filtros que purificam as águas. As pessoas acabam misturando coisas, sorvendo misturas maléficas. Paradoxo: em plena era da informação, o grau de aprendizagem não acompanha o ritmo das novidades e mudanças. A defasagem entre o que se consome e o que é necessário assume proporções extraordinárias.
Feita a digressão, passemos novamente ao nosso cotidiano.
Centralização
A inferência é decorrente da troca de comando na Petrobras: o presidente tende a ser mais centralizador nos próximos tempos. Pensa assim: fui eleito, devo meu cargo ao povo, não aos políticos, vou agora governar ao modo Bolsonaro. Troca aqui, troca ali, troca acolá. Parece querer se aproximar do sistema de governo que anunciou, há dias, não esse que temos. Se der certo, tudo bem. Se não der certo, pode dizer que tentou. Paulo Guedes, nesse cenário, não terá alternativa que a de entregar o boné. Questão de tempo. A não ser que decida fazer como os três macaquinhos: não vi, não ouvi, não falei.
Queda de 102 bilhões
As ações da Petrobras sofreram queda gigantesca. O preço da petrolífera caiu em cerca de mais de R$ 100 bilhões com as falas de Bolsonaro, que também viu sua avaliação positiva cair para 33%. A avaliação negativa do governo Jair Bolsonaro subiu mais de 8 pontos percentuais em quatro meses e atingiu 35,5%, segundo a última pesquisa CNT/MDA. Já a positiva caiu quase nove pontos. O advogado André de Almeida, um dos idealizadores da ação coletiva (class action) que levou a Petrobras a pagar US$ 2,9 bilhões para encerrar uma disputa judicial com acionistas nos Estados Unidos em 2018, já mira uma nova batalha na Justiça em Nova York contra a estatal.
Guedes será vital
Paulo Guedes será peça importante na engrenagem de 2022. Para Bolsonaro confirmar seu favoritismo, precisa administrar uma economia em franca recuperação. Se Guedes não conseguir, o presidente buscará perfil mais populista. Capaz de passar marchas de aceleração no carro da economia, no qual devem caber as demandas populares. Sem cobertor social extenso, Bolsonaro não terá chances. O voto das margens decidirá o rumo do país.
BB, o próximo?
O falatório em Brasília se avoluma: a próxima mudança/intervenção seria no comando do Banco do Brasil. A conferir.
Pfizer
A Pfizer diz que não aceita condições de Bolsonaro para vender vacina ao Brasil. A farmacêutica anuncia que, na América Latina, apenas o Brasil, a Venezuela e a Argentina não aceitaram as cláusulas de seu contrato. Vamos ver se o Congresso muda os paredões legais. P.S. A Anvisa decidiu liberar a vacina, mesmo sob o imbróglio burocrático.
O símbolo I: Lippmann
O emprego de símbolos é um dos estratagemas mais eficazes preferidos pelos líderes para dirigir as massas, para aspirar e inspirar as emoções das multidões (to siphon emotion), segundo a expressão de Walter Lippmann (96) [306]. "É um truque para criar o sentimento da solidariedade e, ao mesmo tempo, explorar a excitação das massas".
O símbolo II: Tchakhotine
"O símbolo pode desempenhar, na formação de reflexos condicionados (como decorre de todo nosso raciocínio) o papel de fator condicionante, que, enxertando-se sobre um reflexo preexistente, absoluto, ou sob um reflexo condicionado constituído anteriormente, adquire, por sua vez, a possibilidade de tornar-se um excitante, determinando essa ou aquela reação desejada por quem faz esse símbolo sobre a afetividade de outros indivíduos. A palavra, falada ou escrita, pode ser utilizada para representar um fato concreto, único e simples, ou um conjunto de fatos, mais ou menos complexos, assim como uma abstração ou todo um feixe de ideias abstratas, científicas ou filosóficas". (Serge Tchakhotine In Mistificação das Massas pela Propaganda Política).
Canetti
A massa I
"A ânsia de crescer constitui a primeira e suprema qualidade da massa. Ela deseja abarcar todo aquele que esteja ao seu alcance. Quem quer que ostente a forma humana pode juntar-se a ela. A massa natural é a massa aberta: fronteira alguma impõe-se ao seu crescimento. Ela não reconhece casas, portas ou fechaduras; aqueles que se fecham a ela são-lhe suspeitos. A palavra aberta deve ser entendida aqui em todos os sentidos: tal massa o é em toda parte e em todas as direções. A massa aberta existe tão somente enquanto cresce. Sua desintegração principia assim que ela para de crescer. Sim, pois tão subitamente quanto nasce a massa também se desintegra".
A massa II
"Seu caráter aberto, que lhe possibilita o crescimento, representa-lhe também um perigo. A massa traz sempre vivo em si um pressentimento da desintegração que a ameaça e da qual busca escapar através do rápido crescimento. Enquanto pode, ela absorve tudo; uma vez, porém, que tudo absorve, tem ela também de, necessariamente, desintegrar-se. Em contraposição à massa aberta - que é capaz de crescer até o infinito, está em toda parte e, por isso mesmo, reclama um interesse universal - tem-se a massa fechada. Esta renúncia ao crescimento, visando sobretudo a durabilidade. O que nela salta aos olhos é, em primeiro lugar, sua fronteira. A massa fechada se fixa. Ela cria um lugar para si na medida em que se limita; o espaço que vai preencher foi-lhe destinado". (Elias Canetti in Massa e Poder).
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação Twitter@gaudtorquato.