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Opinião

Foto: Divulgação

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Iniciando-se a Semana Santa, período introspectivo para os cristãos, oportunidade em que se relembra as atrocidades feitas contra Jesus, que culminaram com sua morte de cruz, não há como deixar de considerar que foi uma condenação de fundo eminentemente político, imposta pelos detentores do poder, que tinham receio da ascensão de Cristo como um novo líder dos judeus. Teria sido uma típica aplicação do lawfare?

Lawfare, em poucas palavras, é o uso estratégico do direito com o objetivo de aniquilar um inimigo ou adversário político. Busca-se, em síntese, a morte política daquele que se apresenta como oposição ao setor defendido pelos grupos que detém o poder.

Para entendermos a aplicação do lawfare na condenação de Jesus, há que se contextualizar o momento histórico que os fatos se passaram. Naquela época os judeus estavam vivendo sob a dominação do Império Romano. Embora tivessem alguma autonomia em suas questões religiosas e culturais, eram dirigidos por governadores romanos e obrigados a pagar impostos ao império. Jesus histórico viveu exatamente nessa época. Em um momento em que os judeus estavam subjugados aos romanos, porém alguns poucos ainda gozavam de certa superioridade política e religiosa em relação à grande massa dos excluídos.

Os líderes políticos judeus eram os saduceus, os doutores da lei e os fariseus. O grupo dos saduceus era formado pelos grandes proprietários rurais (detentores do domínio econômico) e pela elite sacerdotal: tinham o poder nas mãos e controlavam a administração da justiça no Tribunal Supremo (Sinédrio). O grupo dos doutores da lei eram os responsáveis pela interpretação das Escrituras (juristas da época). Já os fariseus eram os que dirigiam a vontade do povo, na medida em que impunham a eles os rigores das Escrituras e com isso ditavam as regras de comportamento.

Jesus¸ nos três anos de sua vida pública, colocou o dedo nas feridas causadas pelas mazelas impostas pelos líderes políticos judeus, contestando suas leis e formas de aplicação, bem como suas tradições e o modo segregacionista que tratavam os outros povos, como, por exemplo, os samaritanos. Os samaritanos eram um grupo étnico-religioso que habitava a região montanhosa central de Israel, entre a Judeia e a Galileia. Por terem cultura e tradições distintas dos judeus, eram frequentemente considerados impuros e hereges.

Jesus pregava uma vida mais igualitária, com a diminuição das desigualdades sociais, criticando, fortemente, o fato de que muitos líderes religiosos da época excluíam os marginalizados da sociedade, como os pobres, os doentes e as mulheres. Seus discursos enalteciam a misericórdia e o amor, o perdão e a compaixão. Jesus arrastava multidões por onde passava e isso começou a incomodar, enormemente, os grupos políticos-religiosos da época.

Os referidos líderes judeus temiam que o aumento da popularidade de Jesus pudesse abalar as suas estruturas de poder, já que muitos consideravam Jesus o “Messias esperado”. A gota d’água para esses líderes foi a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém no “Domingo de Ramos”. Explica-se.

Conforme se extrai dos evangelistas, no domingo anterior ao da Páscoa, Jesus, acompanhado dos seus discípulos (os apóstolos e demais seguidores), foi recepcionado pelos judeus de Jerusalém como rei. Isso mesmo, como rei dos judeus. Ao entrar na cidade muitas pessoas estenderam ao chão seus mantos para Jesus passar e outros o saudaram com ramos, prática usada para recepcionar os líderes políticos, conforme se extrai do livro do Reis (um dos livros da Bíblia que está no Velho Testamento). Esse gesto simbólico era uma forma de honrar a chegada do rei messiânico prometido, que muitos acreditavam que iria libertar o povo judeu do domínio romano.

Jesus, em síntese, ao ingressar como rei dos Judeus (Messias) confronta com o centro político da sociedade judaica simbolizada por Jerusalém e pelo Templo, sede do poder econômico, político, ideológico e religioso. Jesus traz consigo a inversão de um sistema de sociedade apoiado na violência da força militar que defende os privilegiados. O povo o aclamou como aquele que trazia o reino da verdadeira justiça e a notícia se espalhou por toda a cidade. Este fato gerou nos líderes políticos (saduceus, os doutores da lei e os fariseus) a necessidade imperiosa de sufocar a ascensão de um novo líder.

Com receio do grande apoio que Jesus teve do povo judeu, os líderes se reuniram e tramaram para prendê-lo e condená-lo. Para tanto manipularam as leis, desrespeitando os procedimentos legais e os direitos do acusado, previstos na “lei mosaica” (nítida aplicação do lawfare). Cooptaram um dos apóstolos, oferecendo propina para entregar Jesus.

Há que se lembrar que Ele foi preso à noite, no Jardim do Getsêmani, também conhecido como Monte das Oliveiras, e levado a presença do Sumo Sacerdote (Caifás), que fez alguns questionamentos sobre seus seguidores e sua doutrina. Em resposta aos questionamentos, Jesus pontuou: “Eu falei abertamente ao mundo; eu sempre ensinei na sinagoga e no templo, onde todos os judeus se ajuntam, e nada disse em oculto. Para que perguntas a mim? Pergunta aos que ouviram o que é que lhes ensinei; eis que eles sabem o que eu lhes tenho dito.” Ao responder dessa forma agiu nos exatos limites previstos da lei judaica, a qual estabelecia que todo prisioneiro, em julgamento, tinha o direito de ser confrontado com seus acusadores, fato que não foi facultado a Jesus.

Nessa mesma noite, ao arrepio do regramento da Lei Mosaica (Lei de Moises), que vedava a realização de julgamento a noite, Jesus foi sentenciado pelos integrantes do Sinédrio (Tribunal Supremo). Depois de uma busca incessante para achar testemunhas de acusação (os delatores daquela época), duas apareceram e apontaram como suposto crime o fato de Jesus ter dito que poderia derrubar o Templo e reconstruí-lo em três dias. Templo na verdade era uma metáfora, uma vez que Jesus se referia seria a sua ressureição no terceiro dia após sua morte. Seria crime, nos termos da lei de Moisés, fazer tal afirmação? Por certo que não.

Durante o julgamento, tendo em vista a fragilidade abissal da tese acusatória, Jesus fez uso do direito ao silêncio. Então Caifás, violando a proibição legal de exigir de alguém que testificasse em seu próprio caso, o que era permitido apenas quando o acusado desejasse fazê-lo voluntariamente e, de sua livre iniciativa, pediu uma resposta de Jesus e, também, exercendo a potente prerrogativa de seu ofício de Sumo Sacerdote, para colocar o acusado sob juramento, como se fosse uma verdadeira testemunha diante do tribunal sacerdotal.

Uma manipulação atroz contra seu suposto inimigo político (lawfare), conforme se extrai da seguinte passagem bíblica, na qual Caifás pergunta se Jesus é filho de Deus e obtém a seguinte resposta: “Tu o disseste; digo-vos, porém, que vereis em breve o Filho do Homem assentado à direita do Poder, e vindo sobre as nuvens do céu. (...) Eu sou o que tu disseste.” Diante da resposta o evangelista Lucas relata: “Então o Sumo Sacerdote rasgou as suas vestes, dizendo: Blasfemou; para que precisamos ainda de testemunhas? Eis que bem ouvistes agora a sua blasfêmia! Que vos parece? E eles, respondendo, disseram: É réu de morte”. Uma manipulação odiosa das leis com escopo de atingir e aniquilar um “inimigo” político.

Não se pode olvidar, que nos casos criminais, a Lei Mosaica previa a pena de morte para crimes como assassinato, adultério e blasfêmia. No entanto, a lei exigia que o julgamento fosse justo e imparcial e que o acusado tivesse a oportunidade de apresentar sua defesa. Além disso, a lei exigia que duas testemunhas concordassem em suas acusações para que alguém pudesse ser condenado à morte. No caso de Jesus, não houve um julgamento justo e imparcial, pelo contrário, houve uma nefasta manipulação das leis e dos fatos, que vão desde a prisão de Jesus durante a noite, sem uma acusação clara e sem permitir que ele apresentasse uma defesa adequada, até a condenação à morte com base em testemunhos falsos e acusações de blasfêmia.

Embora a Lei Mosaica permitisse a imposição da pena de morte pela blasfêmia, o Sumo Sacerdote não tinha autoridade para condenar alguém à morte, dependendo da autorização do governador romano, razão a qual levou Jesus à presença de Pilatos, com escopo de obter a permissão para executá-lo. O restante dessa trágica história todos sabemos.

Jesus Cristo (“Rei dos Judeus”) foi condenado e morto não por ter cometido um crime ou até mesmo uma blasfêmia contra o Deus dos judeus, mas sim por representar um risco para a establishment político. Os líderes políticos manipularam a lei para condená-lo sem provas com o objetivo de aniquilá-lo como uma nova liderança. Ou seja, os líderes judeus fizeram uso indevido dos recursos jurídicos para fins de perseguição política (lawfare).

Qualquer semelhança com alguns julgamentos contemporâneos na história recente do Brasil não são meras coincidências, o que demonstra a faceta obscura, perigosa, antidemocrática do idealismo que impera nas agências estatais de controle social do delito. Será que os integrantes dessas agências põem a cabeça no travesseiro e dormem tranquilamente após manipular os processos para condenar pessoas?

*Marcelo Aith é advogado, Latin Legum Magister (LLM) em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ensino e Pesquisa – IDP, especialista em Blanqueo de Capitales pela Universidade de Salamanca, mestrando em Direito Penal pela PUC-SP e presidente da Comissão Estadual de Direito Penal Econômico da Abracrim-SP.