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Opinião

Claudia de Lucca Mano é advogada e consultora empresarial atuando desde 1999 na área de vigilância sanitária.

Claudia de Lucca Mano é advogada e consultora empresarial atuando desde 1999 na área de vigilância sanitária. Foto: Divulgação

Foto: Divulgação Claudia de Lucca Mano é advogada e consultora empresarial atuando desde 1999 na área de vigilância sanitária. Claudia de Lucca Mano é advogada e consultora empresarial atuando desde 1999 na área de vigilância sanitária.

O ano de 2024 ficou marcado pelos avanços significativos na evolução jurídica e regulatória da cannabis no Brasil. Com decisões judiciais históricas, novas resoluções da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e o avanço no uso medicinal e veterinário, o setor segue ganhando estrutura e legitimidade. Com um arcabouço jurídico e regulatório mais robusto, o país pavimenta o caminho para um futuro mais inclusivo, onde saúde, ciência e economia caminham lado a lado.

Ainda no primeiro semestre, em junho, o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento histórico e descriminalizou a posse e uso pessoal de cannabis. A decisão da Corte Superior foi um marco na política de drogas ao descriminalizar a posse para uso pessoal, priorizando a saúde pública sobre o punitivismo jurídico. Pelo novo marco judicial, pessoas flagradas com até 40g ou 6 plantas fêmeas serão, presumidamente, tidas como usuárias de drogas, e não traficantes. Trata-se de uma diferença brutal no tratamento jurídico desses casos. A medida deve corrigir o encarceramento em massa de populações pobres, negras e desprivilegiaras, promovendo paz e justiça social, agendas da Organização das Nações Unidas. E também abre caminho para que pacientes realizem o auto cultivo sem o risco de persecução penal pelo estado.

Já em novembro, foi a vez do Superior Tribunal de Justiça (STJ) autorizar o cultivo de cânhamo medicinal, a variedade da planta com baixo teor de THC (tetrahidrocanabinol) de onde são extraídas substâncias medicamentosas, a exemplo do canabidiol. O STJ abriu precedente para a importação e o cultivo de cânhamo, ampliando o acesso aos tratamentos e reduzindo a dependência de importados. Reconheceu que, se a Anvisa já autoriza o uso farmacêutico dos derivados, não pode impedir o próprio país de produzir os insumos. E concedeu seis meses para que o Poder Executivo regulamente a matéria, criando regras claras para plantio, extração e comercialização dos derivados da planta

A Anvisa fez pequenos ajustes regulatórios, mas é preciso avançar. Os aperfeiçoamentos eram prometidos desde setembro de 2023 e foram implementados somente agora, no trimestre final de 2024.

O ajuste mais significativo, em termos de impacto no mercado, foi a inclusão de adendo na Portaria 344/98 (Anvisa) prevendo o uso veterinário de produtos de cannabis. A Agência concentra o poder regulamentar referente a todas as substâncias de controle especial (psicotrópicas, entorpecentes), mas não é competente para liberar produtos com aplicação veterinária, tarefa que que cabe ao Ministério da Agricultura (MAPA).

Quando a Vigilância Sanitária - por ordem judicial, diga-se - passou a regulamentar produtos de cannabis, fez questão de frisar que a normativa era restrita ao uso humano, levando a área veterinária a um limbo regulatório. O resultado foi nefasto para o avanço da medicina veterinária canabinoide, com profissionais prescrevendo sem respaldo do próprio Conselho de Medicina Veterinária (CMV), e com nenhuma regulamentação vindo do MAPA, que alegava dependência da Anvisa. Agora, abre-se caminho para que produtos específicos para animais possam chegar ao mercado, sob autorização do Ministério da Agricultura e mediante prescrição de médicos veterinários.

Outro avanço foi a inclusão da monografia de inflorescência (flores) na farmacopeia brasileira. A importação de flores in natura continua banida, mesmo por pacientes enfermos e com receita médica, por decisão polêmica da Anvisa, em meados de 2023. Mas a existência de um padrão farmacopeico para análise e manejo de flores representa um avanço regulatório para controle de qualidade do insumo, tornando mais claro para a cadeia produtiva e qualidade ao consumidor final.

Até as farmácias de manipulação tiveram boas notícias. Em Minas Gerais, já vemos os primeiros resultados positivos do estado, em que o Judiciário finalmente reconhece o direito de farmácias de manipulação para operar com produtos de cannabis manipulados, mediante prescrição médica derrubando a proibição contida na RDC Anvisa 327/19. Em São Paulo, a tese já encontra boa receptividade no Tribunal de Justiça.

Agora, o tema das farmácias de manipulação será pauta no STF. Em outubro, o Supremo declarou a existência de repercussão geral das demandas, de modo que os ministros irão decidir, de uma vez por todas, se a Anvisa extrapolou os limites de sua competência ao proibir somente as farmácias de manipulação de operar com insumos derivados de cannabis, em detrimento de todo o restante do setor farmacêutico no país. 

Entretanto, a Anvisa não parece ter pressa para realizar a revisão da RDC 327/19, que deveria valer por apenas 3 anos, e, assim, continua brecando o avanço das farmácias magistrais no setor canabico. As empresas que operam com produtos autorizados sob a norma excepcional (importados ou nacionais), ainda estão se adaptando as duras exigências reguladoras do ambiente farmacêutico brasileiro, de modo que não se percebe  nenhum movimento sério da Agência em revisar a norma, pois não existe Consulta Pública nem texto para participação popular.

Mas esses avanços representaram uma virada de chave no mercado. Isso porque os pacientes vislumbram melhoria de acesso aos produtos derivados da cannabis medicinal, impulsionados pelas decisões judiciais e simplificações regulatórias. Em São Paulo, a lei que permite distribuição gratuita pelo SUS começou funcionar de fato em 2024. Esse cenário foi fundamental para o desenvolvimento econômico do mercado de cannabis medicinal e veterinária, que atraiu investimentos e gerou empregos, consolidando-se como setor estratégico da área farmacêutica. E ainda podemos citar o avanço cultural, pois o debate público sobre a cannabis evoluiu, reduzindo estigmas e promovendo conscientização, especialmente com a descriminalização da posse para uso próprio. 

Dois mil, vinte e quatro (e vinte) foi o ano da cannabis no Brasil.

Para 2025, já no primeiro semestre devemos ter - da Anvisa, da União e do Ministério da Agricultura - um consenso ou pelo menos avanços significativos para a conclusão da regulamentação do plantio e cultivo de cânhamo para fins industriais médicos. A matéria é complexa e exige coordenação dos órgãos do Poder Executivo. Mas o STJ marcou prazo de 6 meses, de modo que o relógio conta a favor daqueles que aguardam a regulamentação.

Por enquanto, a PEC das Drogas adormece no Congresso Nacional, depois de perder impulso para outras pautas políticas. Contudo, a tensão entre o Supremo e o Legislativo pode trazer de volta a proposta, que pretende (re)criminalizar a porte e posse de cannabis e qualquer outra droga no Brasil, o que representa um retrocesso na política de saúde cannabica e justiça social que finalmente avança no Brasil com passos importantes tomados e boas respostas dadas pelo Poder Judiciário.

O ano de 2024 será lembrado como um divisor de águas na regulamentação da cannabis no Brasil. Que venha dois mil e vinte e cinco!

*Claudia de Lucca Mano é advogada e consultora empresarial atuando desde 1999 na área de vigilância sanitária e assuntos regulatórios, fundadora da banca DLM e responsável pelo jurídico da associação Farmacann.