A judicialização da saúde tem se consolidado como um dos maiores desafios estruturais do Sistema Único de Saúde (SUS). Dados recentes do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), revelados na pesquisa “Assistência Farmacêutica no SUS”, mostram que 32,9% dos gastos com medicamentos em estados brasileiros, em 2023, decorreram de decisões judiciais. Esse número, por si só, expõe uma distorção grave: recursos que poderiam ser destinados a ações coletivas e estruturantes estão sendo redirecionados, muitas vezes, a demandas individuais — nem sempre urgentes ou embasadas tecnicamente.
Não se trata de negar o direito à saúde, mas de discutir os caminhos adotados para garanti-lo. A judicialização, embora legítima, transforma o acesso ao tratamento em uma disputa de poder aquisitivo e conhecimento jurídico. O fenômeno é mais intenso em regiões com maior densidade de advogados e informação, como Centro-Oeste, Sudeste e Sul. O resultado? Um desequilíbrio preocupante na aplicação de recursos públicos, afetando a equidade do sistema.
Entre 2020 e 2023, o número de novos processos judiciais na área da saúde mais que dobrou, passando de 76 mil para mais de 162 mil. Muitos desses pedidos envolvem medicamentos de alto custo ou ainda não incorporados ao SUS, o que desorganiza a gestão farmacêutica, prejudica o planejamento orçamentário e sobrecarrega os cofres públicos — especialmente os municipais, que são a primeira porta do SUS e também os primeiros acionados judicialmente.
Só em 2024, o Ministério da Saúde já havia empenhado R$ 3,2 bilhões para cumprir decisões judiciais envolvendo medicamentos. Sem a devida avaliação de tecnologias em saúde (HTA), tais aquisições arriscam favorecer tratamentos ineficazes, além de esvaziar verbas que deveriam ser aplicadas em atenção primária, vacinação, estrutura hospitalar e prevenção.
A situação é especialmente crítica para os municípios, que tiveram aumento de 40% nos gastos com medicamentos entre 2019 e 2023, enquanto os repasses federais caíram 21%. A conta não fecha — e quem paga é o cidadão que depende de uma estrutura pública enfraquecida.
O presidente do Conasems, Hisham Hamida, sintetiza bem o dilema: “estamos sendo obrigados a custear medicamentos de altíssimo custo por decisões judiciais, muitas vezes sem o devido critério técnico e sem previsão orçamentária.” Em outras palavras, gestores públicos veem seu planejamento ser anulado por decisões isoladas, que não consideram o conjunto de necessidades da população.
Diante desse cenário, é urgente repensar a política de assistência farmacêutica e o papel do Judiciário na formulação indireta de políticas públicas. Precisamos fortalecer as instâncias administrativas de acesso a medicamentos, como as câmaras técnicas e os comitês de avaliação rápida, além de ampliar o uso e a legitimidade dos Núcleos de Apoio Técnico do Judiciário (NAT-Jus). A formação dos juízes para temas de saúde pública também deve ser contínua e aprofundada.
Mais do que isso, é imprescindível rever o pacto federativo no financiamento do SUS. Não é possível que municípios continuem arcando, sozinhos, com o peso das decisões judiciais, enquanto União e estados se retraem. A judicialização da saúde não pode ser a política pública por omissão. É preciso construir uma resposta coordenada, técnica e solidária — que respeite o direito individual, mas não o sobreponha ao bem coletivo.
*Natália Soriani é advogada especialista em Direito Médico e de Saúde, sócia do escritório Natália Soriani Advocacia.