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Opinião

Diretora da Associação dos Delegados de Polícia (Adepol) do Brasil, delegada Raquel Gallinati.

Diretora da Associação dos Delegados de Polícia (Adepol) do Brasil, delegada Raquel Gallinati. Foto: Divulgação

Foto: Divulgação Diretora da Associação dos Delegados de Polícia (Adepol) do Brasil, delegada Raquel Gallinati. Diretora da Associação dos Delegados de Polícia (Adepol) do Brasil, delegada Raquel Gallinati.

No Brasil, há um padrão que se repete com frequência alarmante: a cada nova crise na segurança pública, o clamor social por segurança é respondido, quase sempre, com propostas simbólicas, discursos de ocasião e, agora, com uma tentativa de reformar a Constituição por meio da Proposta de Emenda à Constituição nº 18.

A PEC pretende alterar os artigos 21, 22, 23, 24 e 144 da Constituição Federal, reorganizando as competências da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios na área de segurança pública. Na prática, porém, o que se propõe é a centralização de atribuições na União, como se a crise de segurança fosse meramente uma falha de distribuição de competências — e não, como de fato é, o resultado de omissões sucessivas, subfinanciamento crônico e ausência de gestão eficaz.

A Constituição não pode continuar sendo tratada como um caderno de rascunhos. Como se alterar o texto constitucional fosse solução mágica para resolver impasses complexos que a própria União se recusa a enfrentar de forma séria. Isso não é política pública. É improviso.

A verdade é que não faltam leis. Falta cumpri-las.

A Lei nº 13.675/2018, que instituiu o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), atribuiu à União três responsabilidades cruciais: formular a Política Nacional de Segurança Pública (art. 3º), elaborar e implementar o Plano Nacional (art. 15), e coordenar a atuação integrada entre os entes federativos, com metas e resultados definidos (art. 22).

Passados mais de sete anos de sua promulgação, pergunta-se: quantos dos objetivos traçados pela lei foram implementados de fato? A resposta é incômoda. O que se viu foi a criação de um sistema sem estrutura, sem diretrizes claras em operação e sem articulação real com os Estados e Municípios.

O SUSP existe no papel, mas não se efetiva na prática. A União editou a lei — mas não a cumpre.

O mesmo se observa na Lei nº 11.343/2006, a Lei de Drogas, cujos artigos 8-A e 8-D preveem ações coordenadas e intersetoriais de prevenção, repressão e reinserção social. Na realidade, temos fronteiras vulneráveis, Polícia Federal desaparelhada e ausência de políticas nacionais articuladas. O crime avança com tecnologia de ponta e estrutura internacionalizada.

O Estado, por outro lado, responde com efetivos reduzidos, ferramentas analógicas e cortes sucessivos no orçamento.

O próprio ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, ao anunciar mês passado concurso para 2 mil novos policiais federais, reconheceu que o efetivo da PF se mantém no patamar de 13 mil agentes — número que apenas recompõe uma defasagem histórica, sem gerar real expansão operacional.

Mesmo assim, a PEC propõe ampliar as atribuições da PF para apuração de infrações com repercussão interestadual ou internacional, ao mesmo tempo em que esvazia competências das polícias civis e militares. Isso não apenas desrespeita a realidade institucional dos Estados como ignora o já conhecido gargalo de efetivo da própria PF.

Outro ponto desconcertante da proposta é a mudança de nome da Polícia Rodoviária Federal para “Polícia Viária Federal”, que, segundo cálculos estimados, pode custar mais de R$ 250 milhões ao erário. Uma reforma estética e simbólica que exigiria novos uniformes, viaturas, sinalização, aeronaves e sem qualquer comprovação de ganho real para a segurança pública.

PECs não são ferramentas para responder à emoção popular. São instrumentos constitucionais graves, que devem ser usados com responsabilidade, parcimônia e base em diagnósticos técnicos. Alterar a Constituição antes de implementar o que já foi aprovado por lei é, no mínimo, incoerente.

A segurança pública brasileira carece de medidas concretas e imediatas, como:

• unificação dos bancos de dados entre as forças policiais;

• protocolos de atuação conjunta, com respeito à competência constitucional de cada instituição;

• capacitação integrada e contínua dos profissionais de segurança;

• padronização das estatísticas criminais por território;

• e, sobretudo, um piso nacional de financiamento — tal como já existe para saúde e educação.

Enquanto a União continuar falhando em cumprir sua parte, desviando o foco para reformas constitucionais que ignoram a realidade operacional das instituições, qualquer tentativa de reestruturação será, antes de tudo, inócua. Pior: poderá aprofundar a desarticulação federativa e a sobreposição de competências.

A solução para a crise da segurança pública não está em retóricas, slogans ou mudanças de nomenclatura. Está na efetiva aplicação das leis já existentes, no fortalecimento das instituições e na articulação real entre os entes da Federação. Está, sobretudo, no respeito à inteligência e à coragem dos profissionais que enfrentam a criminalidade todos os dias, muitas vezes sem respaldo, sem equipamento, sem apoio e — o mais grave — sem orçamento.

Enquanto isso não for prioridade, toda PEC será uma cortina de fumaça.

*Raquel Gallinati é delegada de Polícia, mestre em Filosofia e diretora da Associação dos Delegados de Polícia (Adepol) do Brasil.