Vivemos uma era marcada por uma inversão inquietante de valores, na qual o ressentimento não apenas se alastra como afeto social dominante, mas ascende ao estatuto de capital simbólico. O que antes era reconhecido como fraqueza moral, hoje se converte em plataforma de prestígio e poder discursivo. Esse fenômeno dá origem a uma forma paradoxal de nobreza moderna, uma aristocracia do ressentimento, cujos títulos não decorrem do mérito ou da virtude, mas da habilidade em ostentar feridas, reais ou imaginadas, como emblemas de superioridade moral.
A crítica nietzschiana da moral dos escravos oferece uma chave interpretativa fundamental para compreender tal movimento. Friedrich Nietzsche, em Genealogia da Moral, afiança que o ressentimento nasce quando a impotência converte-se em virtude. Incapaz de afirmar a vida por seus próprios meios, o sujeito ressentido rebaixa os outros, investindo-os de culpa para justificar sua própria condição. No cenário contemporâneo, tal dinâmica é acentuada por dispositivos tecnológicos e redes sociais que favorecem a visibilidade da dor e a estetização da queixa. O sofrimento, real ou performado, torna-se moeda de troca no mercado das identidades e fator de legitimação discursiva.
Essa aristocracia não se estrutura pela posse de bens ou pela linhagem sanguínea, mas pelo monopólio da narrativa do sofrimento. Não é a nobreza que ostenta brasões, mas aquela que reivindica feridas. Tal classe simbólica organiza-se por um regime de hipersensibilidade afetiva, no qual toda discordância é violência e toda crítica, opressão. Sua autoridade não se funda no saber, na ética ou na razão, mas na capacidade de mobilizar indignação, frequentemente volátil, moralista e ancorada em uma concepção binária de mundo.
O ressentido contemporâneo não é apenas um indivíduo “ferido”: é um gestor da própria dor, alguém que a explora publicamente como trunfo argumentativo. Nisso, há uma lógica econômica do afeto: quanto mais ressentimento se demonstra, mais se acumula capital moral. Em um tempo de deslegitimação das hierarquias tradicionais (do saber, da experiência, da racionalidade), o ressentido emerge como figura legitimada para calar, interditar e reordenar os espaços discursivos. O ressentimento não se apresenta mais como queixa silenciosa, porém, o faz como doutrina performática de reorganização simbólica do mundo.
Essa aristocracia do ressentimento alimenta-se da cultura da vitimização, da judicialização das relações e da superposição entre biografia e epistemologia. Uma experiência subjetiva de dor é automaticamente transmutada em verdade objetiva sobre o mundo. Isso acarreta o empobrecimento do debate público, substituído por jogos de afetação, onde o argumento é menos importante que a emoção com que se o profere. Assim, o ressentido não dialoga, ele acusa. Não propõe, denuncia. Não constrói, destrói, pois sua lógica é, fundamentalmente, reativa.
Convém lembrar, entretanto, que denunciar o uso político do ressentimento não equivale a negar as injustiças históricas e estruturais que atravessam os corpos e os discursos. Há dores legítimas, lutas urgentes e desigualdades clamorosas. O problema não reside na existência da dor, mas em sua instrumentalização cínica para adquirir autoridade, interditar o dissenso e cultivar o privilégio da censura.
Contra essa nova nobreza, é preciso reafirmar uma ética do diálogo, do pensamento crítico e da alteridade. Recuperar a distinção entre dor e direito, entre indignação e razão, entre subjetividade e universalidade. Só assim poderemos romper o ciclo do ressentimento elevado a sistema, e restaurar um horizonte de justiça que não seja medido pela intensidade da mágoa, mas pela força do argumento e pelo compromisso com o comum.
A aristocracia do ressentimento é a nobreza da decadência: ela se sustenta no culto ao ferimento, na estetização do trauma e na sacralização da mágoa. Combater seu domínio não implica suprimir o sofrimento, mas resgatá-lo de sua função ornamental. Implica, sobretudo, reabilitar a política como espaço de encontro entre diferentes, e não como arena de ressentidos em busca de coroação simbólica.
*Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da Universidade Federal do Tocantins.