O término de um ano traz uma série reflexões. Há certo tempo, havia inúmeras retrospectivas dos principais acontecimentos. Os fatos mais marcantes, que, em geral, eram ruins ou mesmo péssimos, ganhavam destaque. Esse movimento feito por grandes emissoras de TV e rádio fundamentava o que deveria ser lembrando, manutenido na memória social. Deve-se dizer duas coisas a respeito das retrospectivas de fim de ano: são importantes sínteses, são também recortes dirigidos. Quase ninguém ignora que o mundo descrito não coincide com o mundo vivido, embora a descrição do mundo sirva à sua própria vivência.
Traz-se a retrospectiva como uma forma de organização de acontecimentos segundo uma perspectiva da leitura do próprio mundo no qual se vive. Entretanto, essa já é uma leitura pronta cujos delineamentos estão traçados para que sejam entendidos de maneira X e não Y; ler, efetivamente, requer maior compromisso consigo mesmo, uma vez que a escolha já é uma forma de comprometimento e só pode haver tal compromisso se houver um mínimo de auto entendimento. Nesse direcionamento explicativo, a escolha do que ler é um ato de responsabilidade, já que os fatos organizados virtualmente por tal ação estendem-se ao modo de compreensão das ocorrências da vida.
Ler notícias, em sua integralidade, na busca de fontes confiáveis com comparações entre os mesmos fatos narrados por diferentes veículos de informação é, sem dúvida, a melhor forma de leitura para se atualizar, para saber o que se passa fora de casa e do bairro. Se o tempo disponível para tais ações fosse generoso e democrático, muito provavelmente todos seriam mais cobrados pelo que leem. Todavia, a desculpa não resulta em generalizada aprovação, antes, faz como que a responsabilidade pelo que se lê seja ainda maior. Assim, para além da sondagem do cotidiano por meio de matérias jornalísticas e notícias de origens idôneas, é necessário a continuidade da leitura como um alimento para as demandas do espírito.
Se a escolha do que ler é um ato de necessária responsabilidade, como sustentamos, esse compromisso atinge seu ápice quando reconhecemos a leitura como um diálogo íntimo e criativo. Não se trata apenas de selecionar conteúdos “bons” ou "úteis" em abstrato, mas de escolher aqueles que ressoam com nossa subjetividade em formação. A busca por um romance, um filme ou um ensaio não é aleatória; é guiada por traços de afinidade com nossa personalidade, questões latentes e nosso desejo de compreensão. Escolhemos um autor como Machado de Assis não apenas pela sua maestria literária, mas porque sua investigação das fissuras do ser promete iluminar alguma fresta obscura de nossa própria existência. Optamos por um filme de Wong Kar-wai pelo modo como sua estética da nostalgia e do desejo encapsulado conversa com nossa própria experiência do tempo. Essa seleção, longe de ser um capricho, é o primeiro gesto de uma leitura responsável: é assumir que o texto será um interlocutor ativo na construção de quem somos.
Nesse ponto, o artigo “Ler e criar: práticas necessárias” ilumina o caminho. Nele, defende-se que “ler é, portanto, criar. Criar sentidos, criar mundos, criar versões do que se conhece e de si”. Quando uma obra é escolhida por afinidade, estamos justamente nos predispondo a esse ato criativo conjunto. A leitura responsável é ativa: exige que completemos o texto com nosso repertório emocional e intelectual. Ao nos identificarmos com a jornada de um personagem, não somos espectadores passivos; estamos reescrevendo, em paralelo, a narrativa de nossas próprias vivências. Esse processo transforma a mera aquisição de informação em alimento para o espírito, pois o que era externo (o livro) torna-se internalizado e parte de nossa visão de mundo.
Contudo, a verdadeira responsabilidade interpretativa vai além da identificação emocional. Ela se aprofunda na coragem de ler nas entrelinhas, de decifrar o não dito. É aqui que o argumento de “Ler o invisível: crítica à leitura literal e defesa do gesto interpretativo” se torna fundamental. O artigo alerta que a leitura literal é uma “miopia interpretativa” que, ao fixar-se apenas na superfície visível das palavras, desconsidera que “todo ato comunicativo é, por essência, dialógico e situado”.
Portanto, ser um leitor responsável é recusar essa miopia. É entender que um discurso político não se esgota em suas promessas explícitas, mas deve ser lido à luz de seus contextos e intenções não declaradas. É perceber que a força de uma obra de arte muitas vezes reside no que ela sugere e não no que mostra diretamente. Assumir essa postura é um antídoto poderoso contra as “retrospectivas” prontas e os recortes dirigidos com que se iniciou este artigo. Enquanto essas oferecem um mundo já interpretado e embalado, a leitura responsável nos arma com as ferramentas para interpretar o mundo por nós mesmos, enxergando as camadas de sentido que escapam ao olhar distraído.
Eis que se chega ao cerne da questão. Escolher o que ler com base em uma afinidade autêntica, mesmo que por contraposição, e ler com um gesto interpretativo que busca o invisível não são apenas hábitos culturais desejáveis; são os pilares de um ato de soberania intelectual. Esse é o argumento final, contundente e necessário, que reforça o título: a responsabilidade na leitura é a pedra angular da autonomia do pensamento em uma era de excesso de informação e de narrativas “pré-fabricadas”.
Quando se lê criando e interpretando o invisível, faz-se mais do que consumir cultura. Exercita-se a complexidade do humano contra toda forma de reducionismo. Recusa-se a literalidade que achata discursos, a superficialidade que satisfaz com respostas fáceis e a passividade que delega a outros o direito de organizar o significado da realidade. A leitura, nesse sentido, deixa de ser um passatempo opcional e torna-se um ato de resistência ética e cognitiva. Portanto, a necessária responsabilidade da leitura transcende a esfera do privado; é um compromisso civilizatório. Em um mundo no qual a atenção é o recurso mais cobiçado, cultivar uma leitura profunda, crítica e afetivamente engajada é a maneira mais poderosa de preservar não apenas nossa integridade interior, mas também o tecido mesmo de um diálogo público significativo. No fim, a decisão sobre o que e como ler equivale à decisão sobre a própria identidade e o mundo no qual se almeja viver.
*Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da Universidade Federal do Tocantins (UFT).

