Conexão Tocantins - O Brasil que se encontra aqui é visto pelo mundo
Opinião

Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT.

Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT. Foto: Divulgação

Foto: Divulgação Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT. Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT.

No panteão dos grandes nomes da filosofia política, poucos despertam sentimentos tão ambivalentes quanto Nicolau Maquiavel. Para uns, trata-se de um gênio lúcido, capaz de descrever o real como ele é, e não como deveria ser. Para outros, é o arauto de uma degradação civilizacional, responsável por instaurar uma política divorciada da moral, onde o poder se emancipa da ética e se faz fim em si mesmo. Este segundo juízo, longe de se restringir a uma leitura conservadora ou teológica, emerge de uma inquietação profundamente filosófica: que tipo de mundo nasce quando a verdade é sacrificada no altar da eficácia?

A crítica presente em Maquiavel ou a Confusão Demoníaca é paradigmática nesse sentido. Segundo o autor da obra, Maquiavel não inaugura uma ciência política “realista” no sentido iluminista ou empírico do termo, mas forja, com notável habilidade retórica, uma paródia da razão política. O que parece um manual prático para governantes revela-se, em leitura mais atenta, uma construção ideológica enredada em contradições internas, silêncios estratégicos e artifícios persuasivos. O que há de realista em uma filosofia que abdica da coerência moral para glorificar a dissimulação como virtude?

É preciso dizer sem subterfúgios: o maquiavelismo não é apenas uma doutrina, mas um sintoma. Sintoma de um espírito moderno que, ao romper com a transcendência, perdeu o eixo ético da ação pública. Ao propor a separação entre moral e política, Maquiavel desloca o horizonte da ação humana para uma esfera puramente imanente, onde a virtude, antes entendida como excelência moral, é reconfigurada como astúcia, frieza e cálculo. O Príncipe (o governante) não deve ser justo, mas apenas parecer justo. Não deve amar a verdade, mas apenas usá-la como instrumento. Não deve respeitar a lei, mas manipulá-la conforme a conveniência.

Essa inversão não é menor. Ela rompe com a tradição clássica que via a política como extensão da ética, com finalidade no bem comum e fundamento na ordem natural. Em vez disso, instaura-se uma nova metafísica do poder, isto é, uma “teologia às avessas”, como sugere Carvalho (em Maquiavel ou a Confusão Demoníaca ) na qual o governante torna-se um demiurgo (uma divindade) secular, capaz de remodelar a história não à luz da Providência, mas da própria vontade. Trata-se, em última instância, de um gesto de “hubris filosófica”: usurpar a estrutura da ordem para substituí-la por uma engenharia simbólica orientada à dominação.

Os efeitos desse gesto são conhecidos. Regimes totalitários do século XX, como os de Hitler, Stálin e Mussolini, operaram segundo princípios eminentemente maquiavelianos (desenvolvidos por Maquiavel): manipulação das massas, instrumentalização da linguagem, uso da violência como técnica de governo e sacralização do Estado como entidade absoluta. Todavia, engana-se quem pensa que o espectro de Maquiavel repousa no passado. Ele sobrevive, com nova roupagem, em democracias tecnocráticas e populismos midiáticos, onde a política é reduzida a espetáculo, a palavra é vazada de verdade e a governabilidade é confundida com manipulação.

É nesse ponto que a crítica de Carvalho ressoa com autores como Leo Strauss e Eric Voegelin. Para Strauss, Maquiavel protagoniza uma revolução silenciosa ao substituir a prudência moral pela eficácia estratégica. Para Voegelin, trata-se de um magus, um conjurador moderno que, por meio do discurso, tenta criar uma ordem política autônoma da verdade do ser. A isso se soma a perplexidade de Isaiah Berlin, que, ainda que veja em Maquiavel a tensão entre dois sistemas morais, não percebe, como Carvalho enfatiza, a natureza profundamente destrutiva desse dualismo. Não estamos diante de um pluralismo ético, mas de uma negação deliberada da moral como critério legítimo da ação.

Seria exagero, portanto, afirmar que a filosofia de Maquiavel é incompatível com a dignidade humana? Penso que não. Quando o poder emancipa-se da verdade, não há limite que o contenha. Quando a mentira é promovida a ferramenta legítima de governo, a confiança pública é corrompida. Quando a moral é rebaixada a obstáculo estratégico, a barbárie torna-se possibilidade histórica e frequentemente realidade política.

A crítica ao maquiavelismo não é um anacronismo. É uma necessidade urgente. Em tempos de cinismo generalizado, de crise de confiança nas instituições e de banalização da linguagem, o debate sobre os fundamentos da política precisa ser reaberto. Não é possível restaurar a saúde da vida pública sem recuperar o vínculo entre poder e justiça, entre governo e verdade, entre ação política e responsabilidade moral. O tempo da ingenuidade tecnocrática acabou. O realismo sem virtude é, em última análise, a ilusão mais perigosa de todas.

*Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da Universidade Federal do Tocantins.