Na periferia de uma cidade do Sul do país, cresceu um jovem chamado Luiz Henrique, um garoto tímido que, desde cedo, nutria o sonho de se tornar juiz. Inspirado pelos livros de Direito herdados de um professor velho e aposentado, Luiz enxergava na magistratura não apenas um símbolo de autoridade, mas a grande promessa de controlar o caos que percebia na sociedade.
— Um dia, vou sentar na cadeira de juiz, e ninguém mais vai cometer injustiças nesta terra — dizia, com as mãos tremendo de emoção, sempre que superava uma prova difícil na faculdade de Direito.
Ele era um aluno promissor, dedicado às leis, mas, ainda nos primeiros anos da faculdade, sua visão de justiça já apresentava traços perigosos de absolutismo. Vieira, professor de Direito Constitucional, que frequentemente dialogava com ele, tentava alertá-lo:
— Luiz, a justiça não é só punição. É equilíbrio. É ouvir todos os lados.
— Professor, com o devido respeito, muito desequilíbrio ocorre porque o direito de defesa é usado como escudo para criminosos. A solução está no rigor. A lei deve ser implacável.
Sem espaço para dúvidas ou autocrítica, Luiz Henrique avançava em sua trajetória. Passou na prova da OAB com louvor, mas recusou a advocacia, pois detestava a ideia de defender alguém “guilty as hell” (culpado como o inferno). Para ele, o papel do advogado era uma peça desgastada e dispensável numa engrenagem que deveria servir exclusivamente à punição.
A Toga: Transformação e Obsessão
Luiz Henrique brilhou em todos os concursos públicos que prestou. Aprovado para a magistratura aos 27 anos, fez história como um dos mais jovens juízes de sua geração. No primeiro dia na cadeira, fez a si mesmo uma promessa:
— Para onde o Ministério Público apontar, eu estarei do lado. Juntos, vamos limpar o país. Acabou a era da impunidade.
E foi exatamente o que fez. À frente de uma pequena comarca, aliou-se a promotores locais e policiais federais, formando uma espécie de força-tarefa informal.
Aos poucos, Luiz forjava sua reputação como um verdadeiro “justiceiro” dos tribunais. Para ele, não havia réus que merecessem consideração. Advogados de defesa tornaram-se figurantes inúteis em seus processos. Teses legais eram descartadas com desprezo, como se cada argumentação fosse um truque barato para proteger delinquentes.
Nas audiências, Luiz demonstrava pouco — ou nenhum — respeito às garantias fundamentais. Negava habeas corpus com frases como:
— Este documento não passa de papel desperdiçado de um país que se cansou de proteger culpados. Aqui, na minha vara, não cabe esconde-esconde jurídico!
Apenas dois anos após sua posse, Luiz Henrique já acumulava acusações de violar os direitos dos réus. Suas sentenças atropelavam princípios constitucionais, como o contraditório e a ampla defesa, sob a justificativa de estar combatendo a corrupção. Para ele, formalidades processuais eram “luxos” que só favoreciam os criminosos.
Começaram a surgir histórias sobre como ele, junto aos promotores, ordenava prisões preventivas indefinidamente, sem justificativa concreta. Testemunhas eram coagidas, e vazamentos seletivos para a imprensa moldavam a opinião pública antes mesmo dos julgamentos começarem.
Seu comportamento autoritário começava a gerar resultados questionáveis, mas a população o defendia fervorosamente, alimentada por manchetes que o pintavam como herói da moralidade nacional.
A Dissonância do Justiceiro
Luiz Henrique não percebia que havia se tornado uma contradição ambulante. Enquanto se dizia defensor da justiça, sua atuação era cada vez mais marcada por arbitrariedades. Convencido de que era incorruptível, acreditava ser o único dono da verdade, o verdadeiro salvador de um país corrompido.
Em uma reunião com colegas do Ministério Público, um promotor mais jovem ousou questionar seu autoritarismo:
— Luiz, não acha que estamos indo longe demais em algumas dessas prisões? Nem mesmo houve denúncia formal, e as defesas sequer foram ouvidas.
— Se começarmos a dar voz a advogados e defesa técnica, estamos perdidos. Quem não deve, não teme. Um suspeito não precisa de prazo — precisa de um choque de realidade! Na minha vara, não vou permitir que a corrupção sente à mesa do contraditório.
Sua fala foi recebida com aplausos pelos promotores mais próximos, mas algumas vozes começavam, enfim, a hesitar.
Luiz não cedia. Alimentava-se do poder simbólico da toga. Tornara-se, aos olhos da opinião pública, a personificação de uma justiça pura. Não havia mais espaço para autocrítica. Distratava defensores públicos, ignorava argumentos técnicos e limitava perícias que pudessem enfraquecer as acusações que ele próprio endossava.
Num caso emblemático, Luiz condenou um empresário local com base apenas em testemunhos frágeis, ignorando provas robustas apresentadas pela defesa. O caso ganhou repercussão internacional. Juristas passaram a questionar se Luiz não estaria usando seu cargo para promover uma verdadeira caça às bruxas.
Foi a partir de uma denúncia anônima que o próprio sistema judiciário começou a investigar Luiz Henrique. Promotores e magistrados que haviam dividido operações com ele foram ouvidos, e os relatos eram contundentes: Luiz manipulava interpretações jurídicas, produzia sentenças previamente combinadas com promotores e mantinha réus presos sem justificativa concreta.
As denúncias de abuso de poder logo se acumularam. Num processo histórico, Luiz Henrique foi afastado da função e levado à mesma Justiça que tanto desprezara.
No tribunal, como réu, ouviu da boca do juiz palavras que ele próprio poderia ter proferido anos antes:
— Na ânsia de combater a corrupção, o senhor se esqueceu do dever primeiro de um juiz: garantir que todos, inclusive os culpados, sejam tratados com dignidade e que a verdade seja descoberta dentro dos limites da lei.
Luiz Henrique foi condenado por abuso de autoridade, prevaricação e práticas inconstitucionais. Diante da sentença, declarou:
— Tudo o que fiz foi para proteger o país do mal. Vou dormir em paz, pois sei que meus atos eram necessários.
Luiz Henrique foi encarcerado, mas sua história serviu como um alerta. A linha entre justiça e arbítrio revelou-se mais frágil do que muitos imaginavam. Apesar de seus erros, por muito tempo dezenas de cidadãos ainda o viam como herói.
Entretanto, olhando ao redor de sua cela fria, Luiz percebeu que sua obsessão por um pretenso combate à corrupção lhe custara tudo: sua carreira, sua honra e o sonho de ser digno da toga que um dia vestiu.
No fim, Luiz Henrique não foi vencido pela corrupção que tanto combatia, mas pelo autoritarismo disfarçado de justiça, que corrompeu sua própria alma. O juiz que almejava distribuir virtude tornou-se o maior antônimo dela.
Qualquer semelhança com a realidade não é coincidência — é realidade.
*Marcelo Aith é advogado criminalista. Doutorando Estado de Derecho y Gobernanza Global pela Universidad de Salamanca - ESP. Mestre em Direito Penal pela PUC-SP. Latin Legum Magister (LL.M) em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ensino e Pesquisa – IDP. Especialista em Blanqueo de Capitales pela Universidad de Salamanca.