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Opinião

Claudia de Lucca Mano é advogada e consultora empresarial atuando desde 1999 na área de vigilância sanitária.

Claudia de Lucca Mano é advogada e consultora empresarial atuando desde 1999 na área de vigilância sanitária. Foto: Divulgação

Foto: Divulgação Claudia de Lucca Mano é advogada e consultora empresarial atuando desde 1999 na área de vigilância sanitária. Claudia de Lucca Mano é advogada e consultora empresarial atuando desde 1999 na área de vigilância sanitária.

A recente decisão judicial que suspende, temporariamente, a prescrição farmacêutica reacende um debate que deveria, há muito, estar superado: afinal, cabe ou não ao farmacêutico prescrever medicamentos, fitoterápicos, suplementos e cosméticos, dentro de sua competência técnica? A resposta é clara. Sim, cabe. E mais do que um direito profissional, trata-se de um dever ético e social diante da crescente demanda por acesso a cuidados de saúde.

O arcabouço jurídico que sustenta essa atuação é robusto. A Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XIII, assegura o livre exercício profissional, desde que observadas as qualificações estabelecidas em lei. E é exatamente isso que faz o Conselho Federal de Farmácia (CFF) — órgão que tem respaldo legal, conforme a Lei nº 3.820/60, para normatizar e ampliar, dentro de critérios técnicos e científicos, as atribuições da profissão farmacêutica.

Portanto, não há aqui nenhum exercício arbitrário ou extrapolação de competência. Há, sim, o natural avanço de uma profissão da área da saúde, historicamente subestimada, mas absolutamente essencial. As resoluções que regulam a prescrição farmacêutica — como a CFF nº 586/2013 ora suspensa— são legítimas, constitucionais e refletem a evolução das práticas de cuidado multidisciplinar em saúde. 

Ainda assim, setores conservadores, sobretudo ligados à medicina, insistem em promover uma judicialização que visa preservar reservas de mercado sob a justificativa de proteção à saúde pública. Trata-se de uma narrativa frágil e desconectada da realidade. Tanto que até agora, a maior parte dos julgados era favorável aos farmacêuticos.

Afinal, se o cidadão pode adquirir livremente medicamentos isentos de prescrição (os chamados MIPs) — hoje mais de 200, segundo a própria Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) —, por que o farmacêutico, profissional com formação superior, profundo conhecimento em farmacologia e qualificação técnica, seria impedido de atender, orientar e formalizar essa decisão terapêutica?

Para além da resolução hoje suspensa, o CFF dispõe de inúmeras outras normativas, vigentes, que suportam a existência de farmacia clinica com a prescricao farmaceutica de medicamentos isentos de prescrição médica, de produtos injetáveis para estética, de suplementos nutricionais, de cosméticos e até de medicamentos anticoncepcionais. Isso da suporte para que farmacêuticos clínicos possam continuar atuando, apesar do revés judicial.

No âmbito do legislativo federal, uma década antes da pandemia, a Lei do ato médico era discutida e aprovada pelo Congresso Nacional, e acabou sendo promulgada com 2 vetos importantes, deixando claro que nem diagnostico e prescricao de tratamento, nem realização de procedimentos invasivos é atribuição exclusiva de médicos. O intenso debate da época antecipava essas tensões.

Mais recentemente, no pós pandemia, vimos a evolução do termo “telemedicina" para “telessaúde", consolidado pela Lei nº 14.510/2022, reafirmando que o cuidado em saúde não é, nem pode ser, monopólio de uma única categoria. 

A Resolução CFF nº 727/2022, que regula a telefarmácia, também é exemplo de como o farmacêutico se insere, com responsabilidade, nesse ecossistema, oferecendo cuidado, acompanhamento e orientação terapêutica, seja no balcão, no consultório ou na tela de uma teleconsulta. A resolução 586/2013 que trata de farmácia clínica segue vigente e produzindo efeitos.

No universo da farmácia magistral, essa autonomia é ainda mais evidente. A RDC nº 67/2007 da Anvisa, atualizada pela RDC nº 87/2008, legitima que o farmacêutico, no exercício de suas atribuições, indique e prescreva formulações personalizadas, desde que dentro dos critérios técnicos e éticos e legais previstos. Ignorar esse fato é desconhecer, ou convenientemente esquecer, décadas de construção normativa e de práticas consolidadas no país.

É evidente que essa disputa não é, no fundo, sobre segurança do paciente, como alguns tentam fazer crer. É sobre reserva de mercado e resistência a um modelo de saúde mais colaborativo, multidisciplinar e centrado no paciente. 

Importante destacar que até o momento não há decisão de mérito no Supremo Tribunal Federal (STF) que declare, de forma definitiva, a inconstitucionalidade da prescrição farmacêutica. As decisões existentes são preliminares, isoladas e ainda sujeitas a recurso. Isso significa que o tema segue juridicamente aberto, pendente de julgamento final.

A realidade, no entanto, não espera pelo Judiciário. A população precisa ter acesso facilitado e seguro à orientação farmacêutica. O modelo tradicional, centrado exclusivamente no médico, é insuficiente para atender as crescentes demandas de saúde pública. E negar ao farmacêutico essa possibilidade, sobretudo no cuidado primário, é retroceder décadas.

O caminho, portanto, não é o da interdição, mas o do diálogo institucional. Se há inseguranças, que se aperfeiçoem os protocolos, se estabeleçam critérios claros, se promovam capacitações obrigatórias. O que não se pode aceitar é que se suprima do farmacêutico a prerrogativa de atuar no limite de sua formação, em nome de um corporativismo que, no fundo, só prejudica o cidadão.

O Brasil já aprendeu — a duras penas, inclusive na pandemia — que saúde se faz de forma coletiva, com profissionais de diversas áreas atuando de maneira integrada. A tentativa de transformar o farmacêutico em mero balconista ou auxiliar técnico não encontra respaldo nem na lei, nem na ciência, nem na realidade.

O futuro da saúde é multiprofissional. E, quer queiram, quer não, os farmacêuticos deverão seguir sendo agentes fundamentais nesse processo. Proibir a prescrição não apenas fere a dignidade da profissão, mas compromete a própria lógica de um sistema de saúde que busca ser acessível, resolutivo e centrado no paciente.

*Claudia de Lucca Mano é advogada e consultora empresarial atuando desde 1999 na área de vigilância sanitária e assuntos regulatórios.