O crescimento recente dos chamados "hubs de saúde" — plataformas digitais integradas às farmácias, que oferecem consultas médicas, telemedicina e venda de medicamentos e suplementos — exige atenção redobrada dos profissionais e empresas envolvidos. Embora essas iniciativas possam promover inovação tecnológica e ampliar o acesso aos serviços de saúde, é essencial respeitar os limites impostos pela legislação sanitária e pela ética profissional.
Uma decisão recente da Justiça Federal do Rio Grande do Sul, no caso envolvendo a rede farmacêutica Pague Menos, reacendeu importantes discussões sobre a legalidade e os riscos regulatórios desse modelo. A sentença destacou que a oferta de serviços médicos vinculados à atividade comercial das farmácias pode configurar violação ao Código de Ética Médica, além de prática abusiva como a venda casada — proibida pelo artigo 39, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90).
Não se trata de um caso isolado, mas de uma tendência cada vez mais presente no mercado da saúde: a estruturação de serviços médicos online acoplados a plataformas de venda. A telemedicina, que surgiu como resposta emergencial à pandemia e foi consolidada com a Lei nº 14.510/2022, trouxe avanços significativos no acesso ao cuidado. Hoje, além das consultas síncronas (ao vivo), também são permitidas as chamadas teleconsultas assíncronas, nas quais o paciente responde a questionários online e o médico analisa posteriormente.
Na prática profissional, observo um crescimento expressivo na solicitação de pareceres sobre os riscos dessas iniciativas. São cada vez mais comuns projetos estruturados nesse modelo, desde startups até grandes multinacionais. O foco, em muitos casos, recai sobre nichos comerciais altamente lucrativos, como serviços de emagrecimento, prescrição de hormônios ou suplementos, e dispositivos injetáveis com apelo estético. Não é raro encontrar divulgação de canetas de GLP-1 (semaglutida, tirzepatida) para perda de peso com base apenas em formulários automatizados, sem avaliação presencial — ou sequer virtual — do paciente.
Chama atenção o risco de caracterização da captação e intermediação indevida de fórmulas magistrais, sobretudo quando há envolvimento com farmácias de manipulação. Trata-se de tema amplamente judicializado até cerca de quinze anos atrás, e que foi enfrentado com a promulgação da Lei nº 11.951/2009, que incluiu, na Lei nº 5.991/1973, a proibição desse tipo de prática. Na época, o foco estava na interação entre farmácias de manipulação e drogarias que atuavam como intermediárias entre paciente e laboratório.
Além do risco clínico, preocupa a banalização do ato médico. A consulta torna-se item de assinatura. O cuidado vira etapa do funil de vendas. O médico, um carimbador de decisões comerciais. O paciente, um consumidor que já inicia sua jornada de saúde com um produto predeterminado. Não é exagero dizer que estamos diante de uma linha tênue entre a inovação regulada e um modelo de negócio predatório.
Para a magistrada que proferiu a decisão, a prestação de serviços médicos sem o devido registro no Conselho Regional de Medicina configura prática irregular e perigosa, sujeitando as empresas a multas e suspensão das atividades.
Estaria o médico se tornando uma mera peça na engrenagem comercial, enquanto o paciente se vê cada vez mais desassistido?
Por outro lado, acredito fortemente na possibilidade de se estabelecerem parcerias éticas e responsáveis entre prescritores e farmácias, desde que pautadas por critérios regulatórios bem definidos e práticas transparentes. A decisão judicial mencionada serve de alerta e deve ser compreendida como orientação educativa: inovações tecnológicas não podem suplantar exigências estruturais e éticas.
Assim, recomenda-se cautela às empresas do setor farmacêutico ao investir nessas plataformas, garantindo, acima de tudo, o respeito à autonomia profissional, às normas sanitárias vigentes e ao Código de Defesa do Consumidor — evitando riscos regulatórios relevantes e protegendo, sobretudo, a saúde e a segurança dos pacientes.
A decisão da Justiça Federal do RS acerta ao impor limites. Não se trata de frear a digitalização da saúde, mas de reafirmar distinções éticas inegociáveis. Medicina e farmácia são profissões com finalidades distintas. Um médico não deve prescrever com base em interesses comerciais.
*Claudia de Lucca Mano é advogada e consultora empresarial atuando desde 1999 na área de vigilância sanitária e assuntos regulatórios.