Nos tempos saturados de discursos, de podcasts a audiências públicas, de redes sociais, a palavra “diálogo” tornou-se uma espécie de amuleto retórico. Invocada por políticos, pedagogos e intelectuais, ela parece prometer entendimento, consenso e participação. Mas o que, afinal, significa “dialogar”? Até que ponto esse ideal de conversa mútua é real ou apenas um simulacro civilizado de escuta?
Mikhail Bakhtin, o pensador russo que erigiu o conceito de dialogismo, acreditava que toda fala é, em essência, uma resposta. Nenhum enunciado nasce isolado: cada palavra é uma réplica, ainda que tardia, a outras palavras, ditas, escritas, imaginadas. A ideia é bela, até comovente: todos são participantes de uma conversa infinita, tecida pelas vozes da história. No entanto, a beleza dessa metáfora esconde um problema: ela pressupõe que existe diálogo onde, muitas vezes, há apenas ruído, coerção e monólogo travestido de conversa.
Tome-se como exemplo as chamadas consultas públicas promovidas por governos. Convoca-se a sociedade para “debater” uma proposta de lei, abre-se um formulário online, recolhem-se opiniões, e, pouco depois, a decisão anunciada ignora por completo as vozes ouvidas. Eis o diálogo que não dialoga. Uma encenação participativa em que o resultado já estava escrito antes do primeiro comentário ser digitado. O mesmo ocorre em empresas que convidam funcionários a “construir juntos” o planejamento estratégico, enquanto mantêm intocado o organograma que silencia os dissensos.
Esse tipo de prática evidencia o que poderíamos chamar, com certa ironia filosófica, de contrafactualidade do diálogo: a aparência de conversação onde não há escuta, o rito democrático onde impera o dogma. É o que o filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos chamaria de “abstração deslocada do real”, uma ideia que se descola da experiência concreta e passa a operar como mito legitimador.
Nas redes sociais, a situação adquire contornos quase paródicos. O Twitter, atual X, que prometia o debate público ampliado, transformou-se em arena de linchamentos simbólicos. A cada dia, alguém é “cancelado”, e a polifonia de vozes que Bakhtin celebrava dissolve-se em coros uníssonos de indignação. A lógica algorítmica faz o resto: exibe-nos apenas aquilo com que concordamos, confinando-nos em bolhas de autoconfirmação. O resultado? Um “dialogismo” digital que se reduz à troca de espelhos.
A ironia é que as próprias plataformas vendem a ilusão de diálogo como mercadoria. Falam em “interatividade”, “comunidades” e “engajamento”, mas o que produzem é vigilância, monetização da fala e reforço de discursos hegemônicos. É o monologismo algorítmico, para usar uma expressão que Bakhtin talvez apreciasse, se tivesse conta no X.
Há, contudo, formas de comunicação que não cabem nessa utopia dialógica. Um professor que impõe verdades sem ouvir o aluno; um pregador que não admite réplica; um regime autoritário que simula debate enquanto persegue dissidentes; todos eles produzem palavras sem alteridade. Paradoxalmente, há também os silêncios que dizem mais que mil falas: o silêncio da vítima que não é ouvida, o silêncio reflexivo de quem se recusa a participar de um jogo retórico viciado.
Esses silêncios nos lembram de algo que Bakhtin talvez tenha esquecido: nem toda fala é dialógica, e nem toda ausência de fala é ausência de sentido. Há palavras que nascem sozinhas, há discursos que se fecham sobre si mesmos, há momentos em que o verdadeiro diálogo exige antes uma escuta do real e não do outro.
É aqui que a filosofia concreta de Mário Ferreira dos Santos oferece uma correção vigorosa. Para ele, o pensamento só tem valor se estiver enraizado na existência. Nenhuma teoria é legítima se não puder ser verificada na realidade concreta dos fatos. Aplicado ao debate sobre o dialogismo, isso significa que a linguagem não é apenas um jogo de vozes, mas também um ato situado, permeado por poder, dor, hierarquia, ignorância e emoção.
O trabalhador que ouve o patrão dizer “aqui todos podem falar livremente” sabe, no corpo, o limite dessa liberdade. A professora que pede “debate” em sala, mas corrige com arrogância a voz dissonante, sabe que o diálogo pode ser um gesto autoritário. O cidadão que comenta numa audiência pública virtual e jamais obtém resposta sabe que há escutas que são apenas decoração democrática.
Precisa-se, portanto, de menos teorias sobre o diálogo e de mais vivência dialógica concreta. Diálogo não é sinônimo de fala, mas de disposição. Ele só existe quando há risco de mudança, quando se admite a possibilidade de ser afetado pela palavra do outro. Se a estrutura impede essa vulnerabilidade, o que resta é um teatro discursivo. Bakhtin, com toda a sua genialidade, ofereceu um mapa conceitual que, às vezes, esquece o terreno. Sua visão, embora fecunda, tornou-se um esquematismo contrafactual: um modelo que presume diálogo mesmo onde há interdito, silêncio ou manipulação. Como todo modelo ideal, acaba servindo mais à crença do que à compreensão.
O verdadeiro desafio não é recuperar o “espírito dialógico” da humanidade, antes, reconhecer os lugares onde o diálogo é impossível, e ainda assim agir eticamente. Admitir que há vozes que não se cruzam, experiências que não se traduzem, palavras que não encontram ouvidos. Só a partir dessa lucidez é possível reconstruir o sentido de conversar, de pensar junto, de estar no mundo sem fingir harmonia. O diálogo, afinal, não é um dado ontológico: é uma conquista frágil, contingente e, sobretudo, concreta.
*Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da Universidade Federal do Tocantins (UFT).