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Opinião

Eduardo Maurício é advogado no Brasil, em Portugal, na Hungria e na Espanha.

Eduardo Maurício é advogado no Brasil, em Portugal, na Hungria e na Espanha. Foto: Divulgação

Foto: Divulgação Eduardo Maurício é advogado no Brasil, em Portugal, na Hungria e na Espanha. Eduardo Maurício é advogado no Brasil, em Portugal, na Hungria e na Espanha.

A deferência quase automática às provas digitais transnacionais encontrou um ponto de inflexão na paradigmática decisão da Justiça Federal de Nova York no caso Estados Unidos v. Goran Gogic (United States District Court, Eastern District of New York, processo n. 22-CR-493). O veredito desloca o epicentro do debate: mais do que discutir a legalidade da operação de inteligência conduzida na Europa, a Corte concentrou-se no que é essencial ao devido processo legal, a incapacidade da acusação de demonstrar a autenticidade e a integridade do material apresentado. A decisão não representa apenas uma derrota processual para o Ministério Público; oferece um arcabouço doutrinário e pragmático para a invalidação de evidências que, até então, eram tratadas como inquestionáveis.

A defesa sustentava que o “hack” europeu violaria a Quarta Emenda. O tribunal afastou a tese ao reafirmar que atos de soberania estrangeira, praticados em seu território, não se submetem ao controle constitucional americano. Paradoxalmente, essa derrota indica o caminho: a nulidade não reside na origem da operação, mas na admissibilidade da prova segundo as regras do foro onde será julgada.

É nesse ponto que a decisão se torna disruptiva. A magistrada concluiu que a acusação falhou em comprovar a autenticidade do material oriundo da Sky ECC. O documento oficial francês, que deveria certificar a origem e a cadeia de custódia, foi considerado insuficiente. A Corte reconheceu que a suposta prova não guarda relação com um registro comercial nem com uma extração forense padronizada, até porque a própria acusação admitiu desconhecer o método técnico de coleta. Diante dessa fragilidade, o tribunal impôs um requisito fulminante: a admissão de qualquer conversa depende de validação em juízo por uma testemunha que tenha efetivamente participado dela. Na prática, inviabilizou-se todo o acervo probatório que não possa ser corroborado.

A decisão também aprimora a estratégia defensiva ao delimitar o que não funciona. Argumentos de que as planilhas seriam “resumos” ou de que as conversas estariam “incompletas” foram rejeitados. Para a Corte, as planilhas, tal como recebidas, constituem a prova “original”, e a regra de completude serve apenas para ampliar contexto, não para excluir evidências. A lição é cristalina: atacar tecnicismos periféricos dispersa a tese central; a vulnerabilidade reside na ausência de autenticação.

Outro ponto relevante foi o papel do perito forense de TI. O tribunal permitiu seu depoimento para esclarecer as anomalias técnicas — metadados, formatos, inconsistências, que comprometem a confiabilidade da prova. Contudo, excluiu especialistas que pretendiam opinar sobre aspectos geopolíticos da operação, matéria irrelevante ao júri. Do mesmo modo, não se admitiu confrontar quem produziu as planilhas: tratam-se de “dados brutos gerados por máquina”, não de um testemunho humano. A tática adequada, portanto, é investir em perícia técnica focada nas fragilidades estruturais da evidência, e não em discussões abstratas sobre a investigação.

No conjunto, a decisão Gogic supera a análise meramente procedimental. Ela confere legitimidade judicial à tese que denuncia os vícios inerentes à apropriação clandestina dos dados da Sky ECC. O veredito escancara a impossibilidade de transformar informações de inteligência bruta, obtidas sem transparência, sem método verificável e sem cadeia de custódia, em prova judicial válida. A gênese obscura não é um detalhe: é um vício de origem que se irradia por toda a trajetória processual do material.

Ao rejeitar a tentativa de legitimar essas evidências por meio de atalhos procedimentais, a decisão reafirma a função garantista do devido processo legal. Provas produzidas na escuridão não podem iluminar um julgamento justo. E é precisamente isso que a Justiça americana deixou claro.

*Eduardo Maurício é advogado no Brasil, em Portugal, na Hungria e na Espanha. Doutorando em Direito – Estado de Derecho y Governanza Global (Justiça, sistema penal y criminologia), pela Universidad D Salamanca – Espanha. Mestre em direito – ciências jurídico criminais, pela Universidade de Coimbra/Portugal. Pós-graduado pela Católica – Faculdade de Direito – Escola de Lisboa em Ciências Jurídicas. Pós-graduado em Direito penal econômico europeu; em Direito das Contraordenações e; em Direito Penal e Compliance, todas pela Universidade de Coimbra/Portugal. Pós-graduado pela PUC-RS em Direito Penal e Criminologia. Pós-graduando pela EBRADI em Direito Penal e Processo Penal. Pós-graduado pela CBF (Confederação Brasileira de Futebol) Academy Brasil –em formação para intermediários de futebol. Mentor em Habeas Corpus. Presidente da Comissão Estadual de Direito Penal Internacional da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas (Abracrim).