A multiplicidade de correntes filosóficas e suas cosmovisões, gestadas em diversos tempos, acumuladas e herdadas pela tradição histórica, parecem, frequentemente, distantes de todos. Em alguma medida, isso é uma verdade. Entretanto, desconhecer um fato, não o impede de gerar efeitos, muitas vezes até o impulsiona. Nesse direcionamento explicativo, desconhecer as regras da gramática normativa de uma língua não é um impeditivo para que alguém consiga falar, porém, ao conhecê-las, o processo de fala, também de escrita, pode ganhar expressivamente uma maior densidade.
De modo análogo, a hegemonia silenciosa do nominalismo na mentalidade contemporânea opera como a gramática oculta de nossa época, e sua incompreensão não atenua, antes agrava, seus efeitos deletérios. Herdeiro intelectual de Guilherme de Ockham, que no século XIV brandiu sua navalha metafísica para truncar a existência real dos universais, o nominalismo triunfante de nosso tempo não é mais uma tese de escolásticos, mas o arcabouço implícito que desagrega, de modo sistemático, qualquer visão substantiva da realidade. Seu postulado central, de que os conceitos universais, como “Justiça”, “Verdade” ou mesmo “Natureza Humana”, são meros flatus vocis, sopros de voz destituídos de referente objetivo, migrou dos tratados de lógica para o senso comum, corroendo os alicerces sobre os quais se erigia uma concepção compartilhada do mundo.
Um dos efeitos mais palpáveis dessa cosmovisão é a liquefação da ética em mero procedimento. Ao negar que o “Bem” possua uma realidade inteligível (que pode ser compreendida), o pensamento nominalista reduz a moralidade a um jogo de preferências subjetivas ou a um contrato social desprovido de fundamento último. A pergunta clássica “O que é o humano?” cede lugar à questão administrativa “O que ele deseja?”. Observamos isso na esfera jurídica, onde o Direito Natural, que se alicerça numa ontologia da pessoa, é progressivamente substituído por um positivismo radical para o qual a lei é pura vontade do legislador, uma convenção mutável que pode, ao sabor das maiorias (ou minorias), redefinir os contornos da vida, da família e da própria identidade. O universal “Direitos Humanos”, esvaziado de seu conteúdo substantivo, transforma-se em um significante flutuante, apto a ser capturado por qualquer agenda particular, por mais espúria que seja.
Ademais, a desintegração nominalista manifesta-se de forma crua na fragmentação do discurso público. Se não há uma realidade objetiva a ser descoberta, mas apenas narrativas em conflito, o debate cede lugar à narrativa (ao storytelling), e a busca pela verdade é suplantada pela luta pelo poder de nomear. As próprias noções de “verdade factual” e de objetividade jornalística tornam-se vítimas dessa corrente. O mundo, privado de seus universais, não é mais um cosmos ordenado, mas um aglomerado de particulares irredutíveis, sejam eles indivíduos, grupos de interesse ou tribos ideológicas, cada um clamando pela primazia de sua perspectiva única e inefável. O diálogo torna-se impossível, pois falta o chão comum da realidade compartilhada, substituído pelo pântano movediço das experiências subjetivas inconciliáveis.
Não surpreende, pois, que a esfera mais íntima da identidade pessoal também sucumba a essa dissolução. A negação de uma “natureza humana” como universal real, alicerce do realismo clássico, abriu as comportas para a ideologia da autoconstrução radical, na qual o ser humano já não é uma essência a ser desvelada, mas um projeto inacabado de vontade individual. O ser humano deixa de ser uma essência a ser desvelada e respeitada, para se tornar um projeto de vontade individual, um particular que se define a si mesmo contra qualquer dado objetivo. A célebre sentença de Simone de Beauvoir, “Não se nasce mulher, torna-se mulher” (presente na sua obra “O segundo sexo”), embora enraizada em outra tradição, é a expressão máxima do espírito nominalista aplicado à antropologia: o universal biológico é negado em prol de uma construção social e subjetiva. As consequências dessa visão, da angústia existencial de ter que inventar a si mesmo do zero ao conflito social gerado pela colisão de infinitas autoidentidades, são o ônus inevitável por se ter abandonado a crença em uma realidade dotada de forma e finalidade.
Portanto, o nominalismo, longe de ser uma relíquia inócua, revela-se o ácido que corrói os pilares da civilização. Ele condena a habitar um mundo plano, desencantado e profundamente solitário, onde os conceitos que outrora uniam, verdade, bem, beleza, justiça, são reduzidos a sombras vazias, e onde a linguagem, privada de sua função de revelar o real (apresentá-lo), torna-se um instrumento de poder e de ilusão. Reconhecer essa gramática oculta é o primeiro passo para, quiçá, reencontrar-se o caminho de volta a uma realidade mais concreta, substantiva e, portanto, verdadeiramente humana.
*Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da Universidade Federal do Tocantins (UFT).

