A modernidade, em seu ímpeto secularizante, prenunciou o ocaso das tradições religiosas. No entanto, o espírito humano, em sua busca perene por sentido, parece resistir a tal prognóstico. O que observamos no alvorecer do século XXI não é a extinção do fenômeno religioso, mas a sua complexa transmutação no ecossistema das redes sociais e das relações digitais. Longe de ser anacrônica, a religião demonstra um valor renovado nesta nova sociedade, atuando como um eixo de comunidade, sentido e ritual num mundo fragmentado pela aceleração digital.
As plataformas digitais reconfiguram a experiência comunitária, que sempre foi o cerne da vivência religiosa. Se outrora a comunidade restringia-se ao espaço físico do templo ou da paróquia, hoje ela expande-se para grupos transnacionais no WhatsApp, peregrinações virtuais no Instagram e sermões transmitidos ao vivo no YouTube. Esta “igreja desterritorializada”, como assim pode ser chamada, não é mera réplica pálida da experiência presencial; é uma nova modalidade de sociabilidade que responde à solidão anônima do mundo contemporâneo. Num universo no qual os laços tornam-se efêmeros, a religião online oferece um porto de pertença, uma identidade partilhada que transcende fronteiras geopolíticas e mitiga o que o sociólogo francês Émile Durkheim classificaria como “anomia”. A fé, assim, digitaliza-se sem necessariamente secularizar-se, construindo microcosmos de solidariedade num ciberespaço frequentemente hostil.
Além desse fator, a religião oferece um antídoto potente à crise de sentido exacerbada pela cultura digital. A internet, na sua vastidão caótica, é um oceano de informação desprovido de hierarquia moral inerente. As redes sociais, com os seus algoritmos de engajamento, frequentemente promovem a polarização, a superficialidade e a cultura do cancelamento. Neste contexto, as narrativas religiosas, com os seus arquétipos, a sua ética e a sua cosmovisão, funcionam como faróis hermenêuticos. Elas fornecem uma estrutura narrativa coesa para interpretar o sofrimento, a finitude e a complexidade da existência, questões que os feeds de notícias e os stories efêmeros são incapazes de abordar. A religião, na sua função primordial, responde ao “porquê” da vida, enquanto a lógica digital concentra-se obsessivamente no “como” da conexão técnica.
Não se pode, contudo, ignorar os paradoxos inerentes a esta incorporação. A mesma infraestrutura que permite a disseminação universal de um ensinamento espiritual também pode banalizá-lo, reduzindo-o a um produto de consumo estético. A “religião de feed” corre o risco de fomentar um credo superficial, no interior do qual o gesto de dar um “gosto” substitui a caridade prática, e no qual a imagem do devoto, cuidadosamente “curada”, sobrepõe-se à autêntica busca interior. O ritual, outrora um ato profundamente simbólico e comunitário, pode degenerar em performance para um público invisível. Este é o desafio supremo para as tradições religiosas: navegar no digital sem se deixar corromper pela sua lógica de espetáculo e instantaneidade.
Portanto, o valor da religião na nova sociedade digital não reside numa mera sobrevivência residual, antes numa adaptação vital. Ela responde, com os instrumentos do novo milênio, a antigas carências humanas: o anseio por comunidade, a sede de sentido transcendente e a necessidade de ritual. A arena digital não é, portanto, o cemitério da fé, mas um novo e desafiante agora, a praça pública do mundo globalizado, onde o diálogo perene entre o humano e o divino continua, assumindo novas formas e exigindo novos discernimentos. O sagrado, afinal, não foi expulso do mundo; migrou para a “nuvem”, de onde continua a interpelar o coração humano.
*Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da Universidade Federal do Tocantins (UFT).

