O indivíduo, como um átomo do coletivo, funciona segundo parâmetros sociais. Nesse caso, a própria sociologia o apresenta como sujeito (ao circuito social, cumprindo papéis); a psicologia, que não ignora a constituição socio interacional do ser, compreende o indivíduo em seus aspectos subjetivos e singulares, conforme um conjunto diversificado de abordagens. Eis que do individual para o coletivo, desse para aquele, há uma estrutura organizativa cuja proporcionalidade corresponde à hierarquização de saberes e de objetos, de acordo com suas respectivas funções.
As coisas do mundo concreto são hierarquizadas a partir de seus valores adquiridos ao longo da história humana; os artefatos culturais são organizados segundo uma sistemática cuja compreensão evidencia seus próprios critérios de investimento de saber, poder e distinção social. Tais procedimentos tácitos de classificação traduzem a necessidade de dispor o mundo externo em conformidade com as particularidades e a escala na qual seus objetos são organizados. Nesse direcionamento, uma folha de papel é menos importante do que um livro, uma árvore é menos importante do que uma floresta, uma casa é menos importante do que uma cidade etc.
Como a relevância dos objetos cria uma hierarquização de seus valores acontece de tais escalas também serem desenvolvidas para saberes que adquirem maior ou menor valor no interior do circuito coletivo. Mais uma vez, cria-se a hierarquização de acordo com o significado atribuído (a depender do tempo e espaço tais atribuições variam) ao tipo de saber.No entanto, a dinâmica hierárquica não é um processo automático. Ela exige, de fato, uma recriação constante, uma reavaliação ativa dos valores e saberes que organizam tanto o mundo material quanto o simbólico. Se a hierarquia é, em sua origem, um instrumento de ordenação e sentido, sua rigidez pode convertê-la em instrumento de opressão, de invisibilidade ou de estagnação intelectual. A história mostra que quando os critérios de valoração tornam-se dogmáticos, imutáveis e desconectados da experiência vivida, toda a estrutura social paga um preço.
A falta de recriação hierárquica é perigosa precisamente porque congela relações de poder, saberes e objetos em formas que podem já não corresponder às necessidades, às descobertas ou à ética de seu tempo. Um saber considerado “superior” em uma época pode servir para justificar desigualdades profundas; um objeto valorizado em um contexto pode tornar-se um fetiche vazio em outro. Sem a possibilidade de reavaliação, a hierarquia deixa de ser um sistema vivo de organização para se tornar uma camisa de força coletiva.
Vive-se em uma era de aceleração histórica, em que novas formas de conhecimento surgem, novas tecnologias redistribuem poderes e novas vozes exigem reconhecimento. Nesse contexto, a recriação hierárquica não é um luxo intelectual, mas uma necessidade democrática. A incapacidade de reavaliar o que se considera importante (quais saberes merecem ser ensinados, quais objetos merecem ser preservados, quais experiências merecem ser ouvidas) gera fissuras entre a estrutura oficial e a realidade vivida. Essas fissuras podem se manifestar como crise de legitimidade, conflitos culturais ou mesmo violência simbólica contra grupos marginalizados.
Portanto, a pergunta que se impõe não é apenas “como hierarquizamos?”, mas “como ‘rehierarquizar’ com justiça e discernimento?”. A tarefa é coletiva e contínua: exige diálogo, abertura ao dissenso e coragem para “desaprender”. Se não for feita, arrisca-se à perpetuação de ordens que, em vez de servirem à vida, passam a sufocá-la. Manter a hierarquia em movimento não é enfraquecê-la; é garantir que ela cumpra sua função primordial: ajudar uma sociedade a organizar-se sem deixar de respirar, a estruturar-se sem deixar de evoluir.
*Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da Universidade Federal do Tocantins (UFT).

