Conexão Tocantins - O Brasil que se encontra aqui é visto pelo mundo
Opinião

A crise do petróleo em 1973 levou o físico José Walter Bautista Vidal a idealizar, junto com o engenheiro Urbano Ernesto Stumpf, o Programa Nacional do Álcool, ou Pró-Álcool, implantado dois anos depois. Para eles, o país tinha nas mãos todos os elementos necessários para uma substituição em larga escala dos combustíveis derivados de petróleo: abundância de luz solar, água, terra ociosa disponível e milhões de pessoas sem trabalho.

Atualmente, segundo Vidal – Stumpf morreu em 1998 –, os recursos humanos e naturais do Brasil são mais uma vez fundamentais, no contexto de uma crise definitiva do petróleo e da necessidade de mitigar o aquecimento global. Para o cientista e professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB), hoje aos 91 anos, o Brasil tem a oportunidade de resolver dois grandes problemas globais: acabar com a pobreza e se tornar uma potência mundial.

Para isso, segundo afirmou Vidal em entrevista à Agência FAPESP, o pequeno produtor deve estar no centro das atenções. Enquanto o país investe esforços no desenvolvimento tecnológico, o governo federal precisaria criar uma empresa de economia mista dedicada exclusivamente à bioenergia, que se encarregasse de proteger e de abrir o mercado externo para o pequeno produtor.

Agência FAPESP – O que o Brasil precisa fazer para aproveitar seu potencial como produtor de biocombustíveis?

José Walter Bautista Vidal – A era do petróleo, que está acabando, gerou a era do aquecimento global. Esses são os dois problemas centrais do planeta para os próximos anos e o Brasil tem potencial para resolvê-los sozinho, mas não temos instrumentos para tanto. Temos a terra, a mão-de-obra, o potencial tecnológico, a água e a luz do sol. Mas falta criar uma empresa de economia mista para apoiar o pequeno produtor, desenvolver tecnologia e abrir o mercado externo para nossos produtos.

Agência FAPESP – Uma empresa de economia mista voltada para o etanol?

Bautista Vidal – Não apenas para o etanol. Seria uma empresa de economia mista especializada na área de energia de origem vegetal, renovável e limpa, com visão estratégica. Quando quisemos entrar na era do petróleo, criamos a Petrobras. Começamos com o movimento nacional "O petróleo é nosso" e hoje a Petrobras é o que conhecemos. Quando quisemos criar o programa do álcool, lançamos a Secretaria de Tecnologia Industrial, da qual eu era o titular. Foi necessária uma instituição do estado puxando as coisas, coordenando. Hoje não temos uma instituição que cuide das energias renováveis. Sem isso, não vamos decolar.

Agência FAPESP – Então, precisamos de iniciativa do governo federal?

Bautista Vidal – Sim. O Brasil está predestinado a ser a grande potência da energia renovável do mundo, mas isso não se faz de forma trivial. Precisamos de estruturas, infra-estruturas, competência e de organização. Isso é o que está faltando. A resposta do pequeno produtor é excepcional. Temos que criar uma estrutura voltada para o nosso produtor.

Agência FAPESP – Por que o foco deve estar no pequeno produtor?

Bautista Vidal – Porque é esplêndida a resposta do pequeno produtor à perspectiva de aproveitar essa oportunidade histórica única, mas ele é vulnerável ao mercado externo. Quando ele começa a melhorar de vida, o capitalista entra em cena e compra sua terra, que ele nunca mais vai conseguir comprar de volta. A empresa de economia mista seria um instrumento para estimular e proteger esse produtor, abrindo para ele o mercado externo. Precisamos de uma instituição de grande porte para permitir que o pequeno produtor exporte para o Japão, Alemanha ou China.

Agência FAPESP – Como o governo tem respondido a essas necessidades?

Bautista Vidal – O presidente Lula corre o mundo falando da importância dos biocombustíveis, mas não tem como corresponder às promessas que faz, porque não conta com uma estrutura adequada.

Agência FAPESP – Como o senhor avalia o temor de que o aumento da produção de etanol e biodiesel possa gerar escassez de alimentos?

Bautista Vidal – Isso é totalmente falso. Usando o bagaço de cana e o vinhoto, podemos alimentar 80 cabeças de gado com cada uma das microusinas que temos instaladas, com produção de 400 a 600 litros diários. Isso significa aumento da oferta de leite e carne. O dendê e o girassol geram, após a extração do óleo, um resíduo de alto valor protéico para ração animal. Na realidade, a produção de alimentos aumentará substancialmente. Se implantarmos 1 milhão de pólos energéticos usando o pequeno produtor em grande quantidade, teremos 80 milhões de cabeças de gado com alimento garantido. Vai baixar o preço da carne e do leite. Quem fala de fome está equivocado, ou está usando de má-fé para prejudicar o avanço do Brasil.

Agência FAPESP – Como conciliar o agronegócio à ênfase que o senhor defende na produção familiar?

Bautista Vidal – O agronegócio é o grande inimigo do ponto de vista do pequeno produtor que queremos incentivar. Um exemplo disso é que conseguimos criar uma linha de financiamento para o pequeno produtor no Banco do Brasil, mas a pressão do agronegócio dentro do próprio banco forçou a demissão do vice-presidente da área tecnológica, José Luiz Cerqueira César, que estava montando esse grupo. Outra coisa que prejudica a agricultura familiar é o H-Bio, da Petrobras.

Agência FAPESP – Prejudica por quê?

Bautista Vidal – Porque estão usando óleo de soja para fazer o biodiesel. O Brasil é o maior exportador de soja do mundo, mas essa exportação está na mão de cinco trades norte-americanas que têm o domínio total do mercado. Elas querem ganhar o monopólio do biodiesel, porque o que vale na soja de fato, o que tem mercado no momento, é o farelo. Como grandes exportadoras, essas corporações têm imensas quantidades de óleo sem mercado, que agora estão sendo usadas para produzir biodiesel. Isso vai monopolizar o biodiesel na mão de empresas norte-americanas.

Agência FAPESP – A prioridade então seria mudar a matriz do biodiesel para outras oleaginosas que não a soja?

Bautista Vidal – Isso mesmo. Há um grande potencial de utilização, pelo pequeno produtor, de dendê, de girassol, de pinhão-manso e de outras matrizes. Mas é preciso avançar nas pesquisas e organizar os produtores. Isso levará de cinco a dez anos para gerar uma produção de dimensão compatível. Enquanto isso, o óleo de soja ocupará o espaço, monopolizará o mercado e não deixará o pequeno produtor prosperar. Eles poderão fazer um dumping. As transnacionais têm condições de manipular as bolsas internacionais para que o preço do farelo aumentado possa, sem ônus para as multinacionais, reduzir o preço do óleo. Isso esmagará os pequenos produtores nacionais.

Agência FAPESP – As críticas que o senhor faz ao uso da soja para biodiesel são apenas políticas e econômicas?

Bautista Vidal – Também há razões técnicas. A produtividade do óleo de soja por hectare é muito baixa – é um oitavo da do dendê e um quinto da do girassol. Não é o produto ideal para ser usado no biodiesel. Por outro lado, o ideal seria fazer com que os motores a diesel no Brasil não queimassem biodiesel e sim óleo vegetal in natura. Com isso, o pequeno produtor poderia produzir óleo, filtrar e usar em seus equipamentos, tratores, mecanismos de irrigação e caminhões. Só aí já teríamos um mercado imenso para esses motores. Então, precisamos rapidamente produzir motores ciclo-diesel de alta temperatura que queimam o óleo vegetal in natura, em vez de ter que fazer o biodiesel, que é caro, pois exige retirar a molécula de glicerina. O pequeno produtor não consegue fazer esse processo de transformação, que termina na mão do capitalista que vai esmagar nosso produtor.

Agência FAPESP – A empresa de capital misto seria como uma espécie de "Petrobras do biocombustível"?

Bautista Vidal – Seria diferente, porque ela não iria produzir o biocombustível como a Petrobras produz petróleo. A produção ficaria a cargo do pequeno produtor. A empresa se encarregaria do que o produtor não tem condições de fazer: de desenvolver tecnologia e abrir o mercado interno e externo. Para exportar para o Japão, por exemplo, precisamos de uma infra-estrutura naquele país para receber nossos combustíveis. O papel da empresa seria de mediação com o mercado, coordenação e apoio. Sem o Estado, isso não vai frutificar.

Agência FAPESP – O senhor foi o idealizador do Pró-Álcool. Que lições podem ser aplicadas nesse contexto?

Bautista Vidal – Temos condições excepcionais: muito sol e muita água, muita terra ociosa disponível – além de milhões de pessoas sem trabalho. Era isso que eu tinha em mente durante a criação do Pró-Álcool. Estava nos Estados Unidos na época do embargo e tinha uma noção clara do que aconteceria com o petróleo. Quando voltei para o Brasil, em 1974, reuni um grupo técnico excepcional que chegou a envolver mil especialistas e montamos o único grande programa de substituição de petróleo do mundo. Atualmente, a coisa é maior, porque o Pró-Álcool visava ao mercado interno e teve todo o sucesso nesse campo, mas agora é o mundo que está cobrando. Vamos nos transformar em uma nação independente. Vamos pagar a dívida que drena todos nossos recursos para o exterior e levantar o homem do campo, acabar com a miséria e ser um país importante, soberano e independente.