A construção de uma barragem prejudica o ciclo reprodutivo de diversas espécies de peixes ao impedir que eles nadem rio acima em busca de um local apropriado para a desova. Para minimizar o problema, a solução mais comum é a construção de escadas – sequências de tanques que formam uma corredeira artificial capaz de estimular a subida dos cardumes.
No entanto, um novo estudo feito por pesquisadores da Universidade Estadual de Maringá, no Paraná, mostra que as escadas para peixes, idealizadas originalmente para salmões na América do Norte, são uma armadilha mortal para as espécies tropicais. O dispositivo aumentaria o risco de extinção das populações que vivem rio abaixo das barragens.
O trabalho, de Fernando Pelicice e Angelo Agostinho, foi publicado na edição de fevereiro da revista Conservation Biology e foi objeto de reportagem na revista Nature.
De acordo com Agostinho, o estudo comprovou que as escadas para peixes preenchem todos os requisitos para serem enquadradas no conceito de armadilha ecológica. Idealizadas como medida de conservação, elas atuam como uma fonte adicional de impacto ambiental.
“Confirmamos que as escadas apresentam diversos problemas. O principal deles é que, depois de subir, os peixes adultos e as larvas não voltam mais e, assim, não completam o ciclo reprodutivo. Eles acabam confinados no trecho acima do reservatório, onde o ambiente é mais pobre para a reprodução”, disse.
O estudo é resultado de uma série de pesquisas em parceria com a Universidade de Tocantins. Foram observadas as escadas dos reservatórios de Porto Primavera, no rio Paraná, do complexo do rio Paranapanema e da usina de Lajeado, no rio Tocantins. “Reunimos um grande volume de dados que incluíam levantamentos sobre as escadas, reprodução de peixes, larvas e estudos genéticos. Utilizamos esse conhecimento para aplicar o conceito de armadilhas ecológicas”, disse Agostinho.
Em seu ciclo de vida natural, peixes como o dourado (Salminus brasiliensis), pintado (Pseudoplatystoma corruscans), piracanjuba (Brycon orbignyanus), pacu (Piaractus mesopotamicus) e curimbatá (Prochilodus lineatus) migram rio acima durante a época de cheia para desovar em afluentes.
Mas a volta é fundamental para o ciclo reprodutivo. “Os ovos descem pelo turbilhão das águas enquanto se desenvolvem e, ao chegar à região de várzea, adentram canais e lagoas. Nesses ambientes marginais, desconectados dos rios fora da época de cheia, eles encontram ambiente seguro para crescer. Na cheia seguinte, voltam aos rios e se integram aos cardumes de adultos”, explica Agostinho.
Bom para salmão
Segundo Angelo Agostinho, as espécies migradoras são afeitas às águas rápidas. Depois de utilizar as escadas para passar ao segmento superior do rio, os peixes não voltam mais, pois são desestimulados ao encontrar as águas paradas do reservatório.
“É efetivamente uma armadilha. O peixe sai do trecho abaixo da barragem, onde poderia completar seu ciclo, e vai para o trecho acima, onde não tem condições de retornar”, destacou.
Na parte de baixo, segundo Agostinho, os peixes e larvas poderiam encontrar águas turvas e meandros apropriados para se abrigar dos predadores. “Na parte de cima eles podem até encontrar afluentes do rio para desovar, mas as larvas descem para o reservatório e encontram uma água parada e límpida, onde dificilmente escapam de predadores.”
De acordo com Pelicice, que é o autor principal do estudo, as escadas foram concebidas para salmonídeos que, vindos do mar, sobem os rios, atravessam as escadas e os reservatórios e desovam nas cabeceiras. As escadas funcionam no hemisfério Norte porque os salmões adultos não precisam voltar: eles desovam apenas uma vez na vida e o ciclo se completa numa só jornada. Os peixes da América do Sul, no entanto, desovam diversas vezes na vida.
“No caso dos salmões, a migração descendente ocorre quando o peixe já tem de 12 a 15 centímetros. Por isso, quando migra rio abaixo, o peixe jovem tem condições de passar pelo reservatório e pelos vertedouros. Entre nossos grandes migradores, são as ovas que descem passivamente, por 70 ou 80 quilômetros, enquanto se desenvolvem. Quando encontram o reservatório, ficam à deriva e podem ser predadas por qualquer lambari”, disse Agostinho.
Os peixes da América do Sul, segundo Pelicice, deslocam-se ao longo do rio, dispersando-se pela bacia. Se não têm chance de voltar do barramento, o estoque diminui, ao longo do tempo, na jusante (na parte de baixo do rio).
Sem estímulo para retornar
De acordo com Agostinho, as escadas deveriam ser fechadas quando não há locais para os peixes completarem seu ciclo na montante da barragem. “A escada de Lajeado foi fechada, por solicitação do Ibama, exatamente porque se notou que havia prejuízo para a reprodução das espécies. Mas aquela área, ao contrário do caso de Canoas, não caracteriza uma armadilha, pois conta com vastas áreas acima da barragem”, afirmou o professor titular do Núcleo de Pesquisas em Limnologia, Ictiologia e Apicultura.
Pelicice ressalta que o dispositivo da escada, em si, não representa dificuldade para que os peixes desçam o rio de volta. “O problema é o reservatório. Quando terminam de subir, eles atravessam a água estagnada em busca do trecho superior de rio. Mas, quando tentam voltar, são desestimulados pelo reservatório e nem alcançam a escada de volta”, explicou.
Segundo Agostinho, além de impedir a volta dos peixes adultos e larvas, as escadas não servem para a maioria das espécies. “Elas são implantadas sem um objetivo claro, simplesmente porque há um senso comum que acredita em sua utilidade. Mas só algumas poucas espécies acabam utilizando as escadas, nem sempre as migradoras. Do ponto de vista da conservação, as escadas são ineficazes”, disse.
Para Pelicice, a origem do problema é a ausência de estudos adaptativos. A técnica de escadas do hemisfério Norte foi transposta para a América do Sul sem se considerar o contexto. “Por isso, há diversas deficiências. Há o impacto ecológico, que traz prejuízo às populações, e o problema de seletividade, que é inerente às escadas, porque impossibilita a subida de parte das espécies”, afirmou. (Da redação com informações Agência Fapesp)