Diante da atual onda de violência contra as crianças brasileiras, abandonadas, torturadas, assassinadas e violentadas de todos os tipos fala-se muito de uma ameaça de regressão à barbárie. Mas os inúmeros articulistas dos jornais, revistas de circulação nacional estão enganados, não se trata mais de uma ameaça, pois a regressão já se instalou e a barbárie existe e continuará existindo enquanto persistirem os inúmeros fatores que apontam sua insofismável presença: a intolerância diante do outro, à idéia de que há uma inevitabilidade histórica do capitalismo selvagem, o consumismo, o individualismo desenfreado, a corrupção, a impunidade, a destruição de algumas instituições fundamentais, dentre elas a Justiça.
A cada dia naturalizam-se as mazelas e misérias da condição humana, que em nome de um determinismo amparado pelo viés tecnicista e nas necessidades da concorrência internacional faz predominar o mercado de forma absoluta e de maneira a suprimir quaisquer possibilidades históricas alternativas. Os poderosos de plantão decretam que não existem alternativas e muitos intelectuais, salvo algumas honrosas exceções, se acomodam. Frequentemente quem quer lutar contra tudo isso é taxado de radical, maluco e inconseqüente, pois a única postura aceita é o comodismo, o servilismo e a passividade.
Os que poderiam contribuir com a mudança social frequentemente se horrorizam calados, se voltam ao seu mundinho e umbigos, afinal pensam eles, as vítimas em geral são negros, pobres, crianças que nada lhes dizem respeito. O trabalho infantil, a prostituição de crianças, o trabalho escravo, a violência, são repugnantes, mas não chegará (ainda) aos seus lares e famílias. Ledo engano, é o que está provando os ataques da bandidagem, seja do crime organizado ou a dos colarinhos brancos.
Um das evidências mais brutais do aviltamento da condição humana e barbárie instalada são justamente os atos brutais que estão cometendo contra nossas crianças, que agora são jogadas de prédio, seviciadas em cárcere privados e públicos, mortas arrastadas pelas ruas, estupradas quando voltam da escola... Um país que permite essas insanidades ficarem impunes é um país fadado ao fracasso. Um país que permite que a exploração sexual de crianças e adolescentes nas esquinas, nas estradas, nas redes de exploração sexual, continue impune é um país selvagem, injusto e que caminha para uma situação de total descontrole político.
A situação de violência e barbárie é evidenciada pelos números em todos os estados da Federação. O Tocantins, por exemplo, é campeão nacional de gravidez na adolescência e o número de hotéis, pensões, motéis ou estabelecimentos similares que insistem em hospedar crianças e adolescentes para a pratica do sexo com adultos é estarrecedor. Por incrível que pareça, há até mesmo denúncias de leilão e bingo de virgens, de meninas curradas em orgias de políticos que não são investigadas, porque geralmente quem está por trás são figuras proeminentes que ocupam cargos públicos.
Na maioria dos postos de gasolina ao longo das rodovias do Brasil, principalmente na BR-153, que corta o Tocantins de sul a norte pode ser percebida crianças de 11, 12, 13 anos sendo usadas como objetos sexuais por um prato de comida, por um picolé, por R$ 10,00 reais ou um "presentinho" qualquer. No caso de Tocantins esse tipo de crime é praticado abertamente sem nenhuma ação coercitiva da polícia, dos governos municipais, estadual ou órgãos competentes.
Toda violência deve ser combatida e punida, mas a violência sexual contra crianças e adolescentes que têm se manifestado, sobretudo pela exploração sexual comercial (prostituição, tráfico para fins sexuais, turismo sexual e pornografia via internet e pelo abuso sexual) deve receber uma atenção especial, pois está criando uma geração de pessoas traumatizadas, infelizes, sem perspectivas de vida e prontas a repetirem numa aspiral sem fim aquilo que aprenderam na "escola da vida". Não podemos esquecer que o homem é fruto do meio em que vive e se a ele só ensinam violência, abusos, exclusão social e barbárie, é isso que a sociedade terá de volta em pouco tempo.
A exploração sexual infantil e os abusos contra as crianças do Brasil são frutos das desigualdades sociais e econômicas, fruto da falta de políticas públicas amplas e acessíveis, fruto da subordinação do Brasil a uma globalização econômica que está nos transformando numa neo-colônia globalizada e num cassino global.
De todas as decepções com o governo Lula uma das mais dolorosas é praticamente a inexistência de políticas públicas para o enfrentamento da violência e a exploração sexual infantil. O único programa voltado para essa questão é o Programa Sentinela, que não tem capacidade de atender toda a população e que no ano de 2007 destinou apenas 27 milhões de reais e atendeu 28 mil crianças e adolescentes em 315 municípios brasileiros. Neste ano, o orçamento vai para 35 milhões e quase 800 municípios em todo o Brasil vão estar empenhados em promover ações para conscientizar a população. Mas isso é uma gota diante do oceano degradante da exploração sexual infantil e suas conseqüências nefastas.
A prática de submeter crianças à exploração sexual é crime no Brasil previsto não somente no artigo 244 do Código Penal, mas encontra amparo também em legislações internacionais, como pactos, convenções e protocolos que protegem a infância e a adolescência. A Convenção 182, da Organização Internacional do Trabalho, sobre as piores formas de trabalho infantil, foi ratificada pelo Brasil. O texto dessa Convenção inclui a "utilização, procura e oferta de crianças para fins de prostituição, de produção de material ou espetáculos pornográficos" (Art. 3º) como uma das formas extremas de exploração da infância.
A violência contra crianças e adolescentes é um fenômeno complexo marcado pelos caminhos infelizes que o Brasil vem percorrendo na política, na economia, no modelo de sociedade. Mas também é fruto da covardia, pelo silêncio e medo. Covardia de governos neoliberais que permite a instalação impune da barbárie enquanto o sistema financeiro fatura alto, covardia de quem a pratica a violência, de quem assiste tudo como se não tivesse nada com isso. E silêncio e medo de quem é vítima, dos que não conseguem entender que as raízes do mal, a fonte da perversidade humana é o capitalismo selvagem que tem o dom da destruição e de transformar qualquer coisa em mercadoria.
O caráter de tanta destruição humana e seus potenciais está na busca desenfreada do lucro, na acumulação de capitais, no desrespeito a vida como algo sagrado. Lembremos do velho Marx quando dizia: "a História real da acumulação de capitais se deu pela conquista, a escravidão, o roubo, o assassinato, numa palavra, a violência, desempenharam um importante papel na acumulação de capitais...Os métodos da acumulação primitiva foram tudo menos idílicos."
A moral burguesa já não engana mais tão bem como antigamente, cada dia fica mais evidente que em nossa sociedade o homem enquanto sujeito moral é resultado das relações da infra-estrutura econômica e da superestrutura, nada mais é do que o resultado social das condições econômicas. A mesma coisa se dá no plano jurídico e econômico. Por isso mesmo Althusser estava certo quando afirmava: "O sujeito moral, o sujeito jurídico e o econômico são as três máscaras fundamentais utilizadas pelo homem da sociedade de produção mercantil."
Nesse mundo do capital a barbárie se instala porque a vida vale menos do que a mercadorias, a propriedade e as frias instituições enaltecidas como guardiãs da democracia, mas não passam de cães de guarda dos interesses capitalistas. Enquanto nossas crianças são vitimadas pela violência, fome e miséria os donos do poder continuam planejando na calada da noite qual será a próxima política social a ser mercantilizada, qual o próximo direito a ser retirado dos trabalhadores, qual a próxima reforma legal a ser efetivada para beneficiar o capital. Afinal é assim que eles garantem suas benesses, seu gordo patrimônio, sua vida fácil.
A violência contra crianças e adolescentes no Brasil é a expressão mais cruel das doenças sociais que vivemos e pelas quais ainda devemos dedicar todos os nossos esforços pessoais para por um fim. Mas isso só será possível nos marcos de uma sociedade socialista, radicalmente democrática, justa e com liberdade. Oxalá possamos fazer isso antes deles transformarem totalmente o Brasil num grande canavial, numa grande plantação de soja, num extenso pasto ou num infecundo deserto.
Paulo Henrique Costa Mattos
professor de Sociologia da UNIRG e Presidente do PSOL-Tocantins