Infelizmente, um desastroso e conservador debate sobre o aborto tornou-se protagonista da eleição que irá definir a sucessão do presidente Lula. Engessados pela massa de xiitas religiosos, que primeiro pensam no cofre e depois nas mazelas da saúde pública brasileira, e empenhados na conquista dos milhões de eleitores da “eco-chata” Marina Silva, os candidatos José Serra e Dilma Rousseff pisaram em suas próprias biografias e vestiram a fantasia de santos de paróquia. Desenvolvimento do país? Crescimento econômico? Planejamento estratégico? Educação? Saúde? Transportes? Saneamento básico? Nada disso! A onda política do momento é saber quem mata e quem não mata criancinhas. Então, se o papo é esse, vamos lá!
Em primeiro lugar, é importante considerar que a legalização do aborto, muito além de tangenciar os conceitos legais e morais de liberdade, é uma questão premente de saúde pública. Quando uma mulher não deseja um filho, em geral ela tem bons motivos para isso. Daí coloca-se uma pergunta: por que não houve prevenção? É fato que no Brasil há distribuição gratuita de contraceptivos, aliás, condenados pelas igrejas. Mas não são raros os exemplos de camisinhas vagabundas e pílulas de farinha, tudo em nome de nossa famigerada corrupção. Se a camisinha rompe ou a pílula não funciona, já era!
Mas não é só isso. Numa situação adversa, a família pode considerar-se demasiadamente instável para ter um filho nesse ou naquele momento; podem se achar pobres demais, sem condições de criar uma criança; a mulher pode estar solteira ou ser mal casada; a gestante pode ter a consciência de que é consumida por seu vício em álcool ou drogas e que isso afetará o bebê; os pais podem até desejar ter filhos, mas não o querem nesse momento; ela ou eles podem se considerar jovens demais, sem instrução; e ainda existem as alternativas legais em casos de estupro e quando colocam em risco a vida da mãe. Tantas são as possibilidades reais (e não ideais jurássicos), que a legalização do aborto tornou-se uma questão de vida e não de morte. Dados do próprio SUS revelam que uma mulher aborta a cada 33 segundos e que a prática do aborto em clínicas clandestinas ou de forma caseira e insegura mata uma mulher a cada dois dias.
É claro que o assunto suscita divergências e exalta humores no plano nacional. Mas vamos à História buscar um exemplo delicado e, sobretudo, irônico. Vamos à Romênia, terra do Conde Drácula. Entre 1965 e 1989, o país foi governado pelo excêntrico ditador comunista Nicolae Ceausescu. Até então, a Romênia tinha uma das políticas mais modernas e liberais do mundo com relação ao aborto. Mas, um ano após assumir o poder, o ditator Ceausescu declarou o aborto ilegal sob a alegação de que “o feto é propriedade de toda sociedade” e que quem evitasse filhos seria considerado desertor e traidor da “continuidade nacional”.
Nicolae Ceausescu era um escroque. Em nome do que ele chamava de “criação de uma nação digna para o novo homem socialista”, construiu centenas de palácios para uso próprio enquanto negligenciava a população. Assaltou os cofres do país e chegou a nomear 40 parentes para cargos públicos de primeiro escalão, incluindo sua mulher, a cientista Elena Petrescu, que além de primeira-dama, passou a ser vice-primeira-ministra. Elena, a propósito, era uma ode à grandiosidade e ao ufanismo. Ordenou que passasse a ser chamada oficialmente de “a melhor mãe que a Romênia poderia desejar” e exigiu 40 palácios e um estoque incontável de roupas e jóias.
A loucura socialista do ditador Ceausescu foi tão absurda que foram proibidos todos os métodos anticoncepcionais e toda forma de educação sexual em território romeno. Agentes da Polícia Federal abordavam regularmente as mulheres em casa e em seus locais de trabalho para submetê-las a testes de gravidez, acabando apelidada de “Polícia Menstrual”. Uma mulher que ficasse muito tempo sem engravidar, era condenada a pagar um estratosférico “Imposto de Celibato”. O resultado não poderia ser outro: nos 20 anos seguintes, a Romênia sofreu um boom de natalidade, com o maior índice da Europa e um dos maiores do mundo. Só havia duas possibilidades sociais: ou se pertencia ao clã Ceausescu e à elite comunista, ou era miserável. Então, nem preciso dizer a dimensão dessa tragédia social.
Eis que, 24 anos depois da ascensão de Nicolae Ceausescu, dezenas de milhares de jovens romenos, entre 13 e 20 anos, foram às ruas da cidade de Timisoara protestar contra o regime do ditador. Houve confronto e a polícia, sob ordens de Ceausescu, provocou um massacre, com centenas de mortos. Em sua maioria, os manifestantes eram adolescentes e estudantes universitários. Era 17 de dezembro de 1989. Dias depois, a rebelião tomou conta do país e jovens manifestantes ganharam as ruas da capital, Bucareste. Nicolae Ceausescu e Elena Petrescu sequestraram um helicóptero oficial e tentaram fugir do país, levando consigo $ 1 bilhão de leus romenos.
Nicolae e Elena foram presos durante a fuga, acusados de inúmeros crimes, entre eles corrupção e genocídio, e foram sumariamente condenados à morte. No dia 25 de dezembro de 1989, dia de Natal, chegava ao fim a ditadura comunista romena, com a morte do casal Ceausescu diante de um pelotão de fuzilamento. A Romênia foi o único país do Leste Europeu com um fim violento para seu regime comunista, filhotes da antiga União Soviética. Porém, o mais interessante é que a queda de Nicolae Ceausescu foi precipitada por jovens romenos, boa parte da qual, se o aborto não restasse proibido, jamais teria nascido. Pode até parecer cruel e perigosa essa relação, mas ela é real. Talvez uma realidade de difícil percepção, tal o acanhamento diante dos dogmas que nos são impostos diariamente. Mas é uma realidade e é histórica.
Essas e outras histórias controversas sobre o aborto constam no livro Freakonomics – O Lado Oculto e Insperado de Tudo que nos Afeta (Editora Elsevier, 2005, págs. 119-147), best seller mundial, escrito pelo jovem e genial economista americano Steven Levitt e pelo jornalista Stephen J. Dubner, ambos colunistas do The New York Times. Uma das lebres polêmicas lançadas pelos autores afirma que a queda nos índices de criminalidade dos Estados Unidos na década de 90 estava diretamente relacionada à legalização nacional do aborto em 1973. Ou seja, potenciais criminosos teriam sido interrompidos antes de seu nascimento. É uma tese curiosa e perigosa, mas os autores contam com vasto material de pesquisas para sustentar seus argumentos.
Tenho minhas dúvidas quanto à proposta de Levitt e Dubner e fico com uma frase atribuída ao escritor e historiador inglês G. K. Chesterton, ao dizer que “quando inexistem chapéus suficientes para todos, a solução do problema não é cortar algumas cabeças”. No entanto, não é preciso ser contra o aborto, do ponto de vista moral ou religioso, para perceber que mantê-lo ilegal serve apenas à legitimação da noção de que um sofrimento pessoal possa ser convertido em satisfação coletiva. Uma espécie de socialismo às avessas. E o exemplo histórico romeno me parece bastante oportuno ao equivocado debate eleitoral brasileiro.
(Helder Caldeira)
Escritor, Articulista Político, Palestrante e Conferencista
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