Já não é de hoje que o País vem atravessando um período turbulento, muito disso por conta da Operação Lava-Jato e seus desdobramentos. Referida ação policial, que descortinou uma trama sórdida de corrupção em todos os níveis, de todos os Poderes da República, tem se revelado, de um lado, em fonte de preocupação para uma parcela da classe política nacional e, de outro, em motivo de esperança para boa parte da população, que voltou a acreditar, ainda que timidamente, nas leis e nas Instituições pátrias.
Dentro desse contexto, era mesmo normal, e até esperado, que a sociedade passasse a escolher seus “heróis” e os seus “vilões”. Evidentemente, do lado do “bem” foram endeusados juízes, promotores de Justiça, agentes policiais e todos os demais que passaram a “lutar contra a corrupção”. De outra banda, vistos como “inimigos da Nação”, ficaram aqueles que “sugaram” o Brasil durante anos, ou corrompendo ou se deixando corromper em troca de favores e poder.
Traçados estes parâmetros, uma vez identificado “quem é quem” no contexto das investigações, duas foram as consequências práticas que surgiram, ambas extremamente perigosas à ideia de um verdadeiro Estado Democrático de Direito.
A primeira delas, verificada logo no início das apurações e que ainda perdura, foi a permissão tácita, concedida pelo “clamor social”, para que certos exageros fossem cometidos, em detrimento dos direitos e garantias fundamentais dos investigados. De fato, sob o falso pretexto de que “o interesse público deve prevalecer sobre o privado”, permitiu-se, com o aval do Poder Judiciário, que prisões preventivas fossem decretadas aos borbotões (e sem o critério devido), que delações fossem “vazadas” para que outras pudessem ser obtidas, que conduções coercitivas fossem determinadas ao arrepio da lei, dentre tantos outros desvios. E, dentro desse cenário, é certo que a sociedade a tudo aplaudiu, o que conferiu certa legitimidade para que os excessos continuas sem sendo praticados, impunemente.
De outro lado, ao mesmo tempo em que tais excessos passaram a ocorrer, era de se esperar que vozes se levantassem para denunciá-los e, também, para postular pela responsabilização pessoal daqueles que se excederam. Foi, aí, então, que a segunda consequência eclodiu, vez que, de forma cega e inconsequente, o corpo social passou a incluir no grupo dos “vilões” – até então formado apenas pelos efetivos agentes dos crimes – todos aqueles que, de alguma forma qualquer, ou passaram a criticar as operações policiais ou, então, tentaram denunciar os excessos e as ilegalidades que vinham sendo – e ainda são – praticadas.
Criou-se, assim, uma profunda cisão no nosso meio social, de tal forma que ou se está com a Lava-Jato (o que pressupõe admitir, sem ressalvas, qualquer forma de atuação do Estado no combate à corrupção) ou, então, se é contrário (seja um investigado ou apenas alguém que pregue a defesa de garantias constitucionais), o que o torna também, em paralelo, “defensor da corrupção”. Infelizmente, no que diz respeito à Lava-Jato, o “meio-termo” e a serenidade deixaram de existir.
E foi justamente dentro desse tumultuado contexto que, de uns tempos para cá, o Congresso Nacional passou a debater o Projeto de Lei do Senado (PLS) n. 280/2016, que tem como objetivo definir os crimes de abuso de autoridade.
O debate em torno desse tema, assim que surgiu, tem causado enorme alvoroço. Afinal, por conta da forma maniqueísta de pensar da sociedade, o referido projeto foi imediatamente repelido, tachado como uma “defesa dos envolvidos” para assim “obstaculizar a Lava-Jato”, etc.
Na mesma toada, o grupo dos tais “heróis” passou a fazer forte propaganda contra a aprovação daquele PLS, pois, de acordo com o entendimento sensacionalista por eles defendido, a aprovação do projeto representaria o “fim da Lava-Jato”.
Contudo, é bom dizer, desde logo, que a realidade é bem outra.
O PLS 280/2016 representa, sem nenhuma dúvida, um grande avanço no tratamento do tema atinente ao abuso de autoridade. Aqui, é importante esclarecer que o crime de abuso de autoridade já existe em nosso ordenamento jurídico e, atualmente, está previsto na Lei 4898/65. Vê-se, pois, não é algo novo nem revolucionário.
Ademais, cumpre dizer que referida lei foi elaborada e entrou em vigor justamente durante o período militar, ou seja, na época da ditadura, durante a qual os abusos eram mais frequentes e violentos. Seguramente, vem daí, pois, o motivo de ser uma lei pífia, de pouca aplicação prática e que, na realidade, não pune ninguém (a pena prevista para o crime de abuso de autoridade, segundo a Lei 4.898/65, é de míseros 10 dias a seis meses de detenção).
Ora, vivemos uma época diferente daquela que o país atravessava em 1965. De lá para cá, vivenciamos não só uma grande modernização nos métodos de investigação, como também vivemos uma era em que, muito por conta das melhorias tecnológicas, tudo é investigado, devassado, apurado, cruzado. É preciso, portanto, conferir ao cidadão uma ideia mais clara e precisa a respeito dos efetivos limites dos agentes públicos, sobretudo no que diz respeito às investigações e apurações de crimes.
Muitos dizem que esse não seria o momento (mais) adequado para a discussão e posterior aprovação daquele projeto, já que, para estes, uma lei que coibisse o abuso de autoridade poderia atrapalhar o desenrolar das investigações ou, quiçá, até colocar um fim na Lava-Jato.
Tal raciocínio, contudo, é totalmente equivocado. Admiti-lo importaria em aceitar que o Estado pode, quando bem quiser, praticar abusos contra os seus cidadãos; o que soa absurdo e totalmente fora de propósito. Aliás, indo na contramão da maioria, entendo que o momento não poderia ser melhor para se debater a questão, afinal, é justamente agora, quando os excessos se tornam “justificáveis” perante o clamor social, que se faz preciso adotar medidas legislativas eficazes para coibi-los e brecá-los.
Positivamente, ainda que vivamos um período tormentoso, marcado por uma perigosa divisão entre o “bem” e o “mal”, é sempre preciso ter em mente que os agentes estatais não podem fazer tudo aquilo que desejam, sob pena de incorrerem em excessos manifestamente ilegais, que desvirtuam o regime das garantias constitucionais e atentam contra o Estado Democrático de Direito. Da mesma forma que o particular possui os seus limites e, quando os viola, acaba sendo punido por isso, também aqueles que agem em nome da Administração Pública precisam ter limites bem determinados e, claro, serem responsabilizados, civil e criminalmente, quando se excederem.
Realmente, não se consegue entender o porquê de tanto “medo” pela aprovação do projeto de lei. Afinal, mal algum há em se estabelecer limites à atuação de qualquer autoridade. Trata-se, sem dúvida, de uma garantia tanto para o agente público, que passa a saber até onde vai a sua “autoridade” e, ainda, o que pode (ou não) fazer, quanto para o particular, que ganha mais efetividade para se defender dos excessos perpetrados pelas “autoridades”.
Por fim, é preciso dizer que o PLS 280/2016, embora seja um avanço se comparado com a nossa lei atual, precisa, de fato, de alguns ajustes e reparos. Porém, a sua aprovação é, sim, medida imperiosa e urgente.
*Euro Bento Maciel Filho é advogado criminalista, mestre em Direito Penal pela PUC-SP e sócio do escritório Euro Filho Advogados Associados