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Opinião

Foto: Divulgação

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O Projeto de Lei nº 872/20, de autoria do senador Jaques Wagner, foi aprovado na última terça-feira, 26, e seguiu para sanção do presidente da República. O PL dispõe, segundo seu art. 1º, a suspensão, durante o curso de calamidade pública, dos “processos judiciais com pedido de ordem de despejo e reintegração de posse, em caráter definitivo ou em tutela de urgência, motivados pelo não pagamento de empréstimos imobiliários, aluguéis ou fim de comodato; bem como ações de execução de hipotecas e alienação fiduciária de imóveis residenciais”. Mas em seu art. 3º parece ir ainda mais longe, pois esclarece que “as suspensões de que trata a presente lei abrangem toda e qualquer ação judicial ou ato administrativo que resulte na retirada ou expulsão de indivíduos de imóvel que esteja sendo utilizado como moradia, seja ele bem público ou privado”.

A justificativa do projeto é, em linhas gerais, a seguinte: em tempos de pandemia, sendo a recomendação que a população permaneça em casa, não se poderia permitir que fosse dela retirada por falta de pagamento de contratos, especialmente se as dificuldades financeiras que impedem seu cumprimento são causadas pela mesma crise que recomenda o distanciamento social.

A intenção é certamente louvável, mas como em tantos outros casos no Brasil, o ato que ela produz esconde enormes perigos.

Apesar disso, esse Projeto, que deveria estar recebendo grandes atenções pelos mais diretos impactos que terá na vida dos brasileiros, acabou eclipsado por tantos outros atos do Estado, entre eles a tal Medida Provisória da “restrição da responsabilidade de agentes públicos”.

Contudo e pela importância, não podemos agora desviar o olhar das mazelas que estão por vir e que se escondem no teor texto aprovado.

Antes de mais, entretanto, devemos passar os olhos sobre a Lei de Locações e de Alienações Fiduciárias de Bens Imóveis, para compreender como a retomada da posse de tais bens é atualmente regida e, ainda que brevemente, perceber os porquês disso.

A Lei 8.245/91, a Lei de Locações, com modificações instituídas pela Lei nº 12.112/2009, admite que se conceda liminarmente ordem de desocupação de imóveis nos casos seguintes: descumprimento de acordo de desocupação fixada para ocorrer no mínimo em 6 (seis) meses; na locação por prazo inferior a 30 meses, se finda relação de emprego por força da qual se instituiu; término do prazo de locação por temporada; morte do locatário, sem deixar sucessor legítimo na locação; permanência de sublocatário após a extinção da locação; necessidade de reparos urgentes do imóvel; término do prazo de locação residencial após comunicação do locador da intenção de retomada do bem; falta de pagamento de alugueres e/ou acessórios da locação após seu vencimento, não estando o contrato garantido por fiança, seguro fiança, caução ou cessão fiduciária de quotas de fundo de investimento.

Portanto, entre inúmeras hipóteses previstas para o despejo liminar na Lei de Locações, só uma versa sobre a falta de pagamento e, ainda assim, quando a locação não tenha qualquer garantia contratualmente fixada. Nesse caso, o que se pretende é mitigar os prejuízos que um locador, que já não tem garantias contratuais para recuperá-los, sofreria aguardando a retomada de seu imóvel por anos até a decisão final no processo. Seria, ainda, possível se requerer liminarmente a desocupação do imóvel por falta de pagamento, ou outros descumprimentos contratuais, desde que demonstrados o perigo de se incrementarem danos e prejuízos já sofridos pelo locador se tolerada a ocupação irregular pelo locatário até a decisão final no processo. O que se discute aqui é evitar os males do tempo, da espera, quando evidente o descumprimento e necessária a retomada do imóvel.

Esses processos de despejo movidos por falta de pagamento é que teriam seu curso suspenso, nos termos do Projeto de Lei nº 872/20, e por tempo indeterminado.

Mas cabe perguntar. Qual o objetivo do legislador quando autorizou as hipóteses de despejo liminar por falta de pagamento?

A ideia geral por trás disso era criar incentivos para que os proprietários de imóveis, ao invés de deixá-los fechados e desocupados por temerem ter de esperar longamente por sua retomada em caso de descumprimento do contrato de locação por seus inquilinos, tranquilizassem-se e se dispusessem a locá-los. Ou seja, pretendia-se incentivar os particulares, proprietários de imóveis, a ofertá-los no mercado para que fossem alugados, assim diminuindo o déficit habitacional.

Uma esperança similar guiou as mãos do Congresso Nacional em 2017, quando converteu na Lei nº 13.465 a Medida Provisória 759/16, que alterou os termos da Lei nº 9.514/97 e tornou possível o leilão extrajudicial de imóveis objeto de alienação fiduciária em garantia e permitiu àqueles que os adquirissem que desde logo, e liminarmente, conseguissem a sua posse. Isso também se pode dizer da sistemática de imissão na posse de bens imóveis hipotecados, vendidos em leilão em processos movidos para satisfação de créditos não pagos e por eles garantidos. Nesses dois casos, o objetivo era tornar menos demorados e custosos os mecanismos de satisfação de créditos, o que estimularia a concessão de empréstimos e a redução de suas taxas de juros, pois a alienação fiduciária se tornaria uma garantia mais eficiente.

Mas parece que o Projeto de Lei nº 872/20 esqueceu-se disso, ou pelo menos faz pouco caso desses objetivos. Isso porque não só impede o despejo ou a reintegração de posse liminares, mas suspende o curso de todos processos judiciais ou administrativos que versem sobre a retomada de imóveis como forma de mitigar prejuízos do inadimplemento de contratos.

Não se pode esquecer, ainda, que já existem instrumentos jurídicos em vigor e capazes de endereçar o problema que gostaria de resolver esse Projeto.

O caso fortuito e de forma maior, ou a modificação das condições que existiam quando da conclusão do contrato (base do negócio), são fatos que autorizam a revisão de contratos e obrigações e permitem afastar as consequências da falta de pagamento. É o que encontramos disposto nos arts. 317, 393, 478, 479 e 480 do Código Civil.

Assim, seria possível ao locador inadimplente requerer não só o afastamento das consequências do atraso no pagamento de alugueres, mas também a revisão do próprio contrato de locação, evitando o seu despejo, se as dificuldades de seu cumprimento tivessem origem nas situações criadas pela pandemia, ou pela quarentena, por exemplo.

Teriam os devedores, nesse caso e entretanto, de confiar no bom senso dos Juízes, justamente o que parece não fazer o Legislativo, afinal se confiasse na sabedoria do Judiciário não teria produzido esse tal Projeto.

Assim, é de se esperar que, sancionado o Projeto com o texto que apresenta, será criado um desincentivo à oferta de imóveis para locação, alargando a crise habitacional, e um desestímulo à concessão de empréstimos ao consumidor. E isso, quando o crédito é necessário para que muitos atravessem a crise econômica que já está aqui.

Resta-nos esperar que o Executivo seja mais sábio que o Legislativo e deixe de sancionar o Projeto, evitando os problemas que uma inadvertida suspensão de inúmeros processos em andamento pode causar.

*Taarik Castilho, sócio responsável pela área Contencioso Cível do Franco Advogados