Conexão Tocantins - O Brasil que se encontra aqui é visto pelo mundo
Opinião

Foto: Divulgação

Foto: Divulgação

O mundo jurídico foi surpreendido pela decisão monocrática do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), que reconheceu a incompetência da 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba para processar e julgar alguns processos criminais (triplex, sítio de Atibaia e Instituto Lula da Silva) envolvendo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Foram apreciados os autos dos embargos de declaração no HC nº 193.726-PR. A decisão de 46 páginas.

O reconhecimento da incompetência, com a anulação dos processos do triplex do Guarujá e do sítio de Atibaia, resulta em consequências importantes no âmbito jurídico e político a saber: juridicamente os atos decisórios dos processos são anulados e todas os efeitos secundários, como a inelegibilidade, são alcançados; politicamente, voltando a ser elegível, poderá concorrer ao cargo presidência, uma vez que o único obstáculo ao exercício da capacidade eleitoral passiva (direito de ser votado) era o impedimento constante do artigo 1º, I, “e”, da Lei Complementar 64/90, com a redação dada pela Lei da Ficha Limpa (LC 135/2010): “os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, pelos crimes: (...) 1. contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público;  (...) 6. de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores;” (Redação dada pela Lei Complementar nº 135, de 2010).

Muitos devem estar a perguntar o que é incompetência? Para entender o que vem a ser incompetência devemos esclarecer o que é competência. Competência é a delimitação da jurisdição: o que é essa tal jurisdição?

Na lição do mestre Aury Lopes Junior jurisdição nada mais é do que “o direito fundamental de ser julgado por um juiz, natural (cuja competência está fixada em lei), imparcial e no prazo razoável”. Ou seja, a competência delimita a atuação de um juízo (Comarca) a determinado local (área de atuação). Um exemplo pode esclarecer melhor: uma pessoa é acusada de furtar uma caixa de ovos na cidade de São Paulo. Assim será julgada por uma das varas criminais da Comarca de São Paulo. Caso seja denunciada em Curitiba, essa comarca será incompetente para examinar e julgar esse caso e o eventual processo deve ser anulado. Foi isso que aconteceu, basicamente, nos processos anulados pelo ministro Fachin.

Mas como se define a competência? Há algum critério que excepciona a regra geral? A regra geral de fixação de competência é a estabelecida no artigo 70 do Código de Processo Penal: “A competência será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração, ou, no caso de tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de execução”.

No entanto, há situações, em especial em grandes operações (como na Lava-Jato), que há outros fatos conexos com o que gerou a fixação da competência, o que faz com que haja atração para ser julgado pelo mesmo juízo, assim evitando decisões conflitantes sobre fatos análogos (art. 76 do CPP). Nos casos envolvendo o ex-Presidente Lula, a Força-Tarefa de Curitiba ajuizou as ações em Curitiba e o ex-Juiz Moro reconheceu a competência para processá-las e julgá-las, sob a alegação que se tratava de propinas decorrentes do favorecimento indevido ao cartel de construtoras ligados aos contratos com a Petrobras.

Aparentemente a alegação para que os feitos seguissem em Curitiba faziam sentido, porém a defesa do ex-Presidente sustentou a incompetência, ao argumento de que os fatos não tinham relação alguma com os contratos das construtoras com a Petrobras: “não há correlação entre os desvios praticados na Petrobras e o custeio da construção do edifício ou das reformas realizadas no tal tríplex, em tese, feitas em benefício e recebidas pelo Paciente; nem, tampouco, vínculo inerente às imputações julgadas improcedentes”.

Transcorridos anos a fio e algumas instâncias do Poder Judiciário, o ministro Fachin, também tardiamente, reconheceu que os fatos trazidos nos processos do Triplex do Guarujá, Sítio de Atibaia e Instituto Lula não estão conexos com os fatos apurados pela Força-Tarefa e assim devem ser remetidos para o juízo competente (alguma das varas federais de Brasília), senão vejamos:

“Como se vê, diante da pluralidade de fatos ilícitos revelados no decorrer das investigações levadas a efeito na “Operação Lava Jato”, a competência da 13ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba foi sendo cunhada à medida em que novas circunstâncias fáticas foram trazidas ao conhecimento do Supremo Tribunal Federal que, em precedentes firmados pelo Tribunal Pleno ou pela Segunda Turma, sem embargo dos posicionamentos divergentes, culminou em afirmá-la apenas em relação aos crimes praticados direta e exclusivamente em detrimento da Petrobras S/A.

(...)

Desse histórico, especificamente em relação aos agentes políticos que o Ministério Público acusa de adotar modus operandi semelhante ao do ora paciente, sobressai que o Plenário e a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal formataram arcabouço jurisprudencial de acordo com o qual casos análogos ao tratado nestes autos fossem retirados da competência da 13ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba.

(...)

A narrativa ministerial contextualiza as específicas imputações ao paciente no exercício das atribuições de mandatário da chefia do Poder Executivo da União, no qual teria comandado “a formação de um esquema delituoso de desvio de recursos públicos destinados a enriquecer ilicitamente, bem como, visando à perpetuação criminosa no poder, comprar apoio parlamentar e financiar caras campanhas eleitorais.

(...)

Conclui-se, portanto, que o Ministério Público Federal, à época em que aforou a denúncia em desfavor do paciente, já tinha ciência da extensão alcançada pelas condutas que lhe foram atribuídas, as quais abarcaram não só a Petrobras S/A, mas outros órgãos públicos, sociedades de economia mista e empresas públicas no âmbito das quais, com semelhante modus operandi, foram celebradas contratações revestidas de ilicitudes, em benefício espúrio de agentes públicos, agremiações partidárias e empreiteiras.

Optou-se, à época, pela concentração dos feitos relacionados ao aludido grupo criminoso no âmbito da competência da 13ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba, dentre os quais o caso ora sob análise.

(...)

No caso, restou demonstrado que as condutas atribuídas ao paciente não foram diretamente direcionadas a contratos específicos celebrados entre o Grupo OAS e a Petrobras S/A, constatação que, em cotejo com os já estudados precedentes do Plenário e da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, permite a conclusão pela não configuração da conexão que autorizaria, no caso concreto, a modificação da competência jurisdicional.”

Conforme lançado pelo ministro Fachin as “regras de competência, ao concretizarem o princípio do juiz natural, servem para garantir a imparcialidade da atuação jurisdicional: respostas análogas a casos análogos”. Dessa forma, ao reconhecer a incompetência o ministro Fachin está a entender que foi rompida a barreira constitucional do juiz natural e se está a tangenciar a parcialidade. A parcialidade ficou evidenciada com as mensagens trocadas entre o ex-Juiz e a equipe da força-tarefa, em um ambiente de inequívoca promiscuidade e quebra da paridade de armas.

No entanto, a decisão não terá jamais a força de apagar as consequências deletérias à vida do ex-Presidente, que ficou alijado de sua liberdade em decorrência de sentença condenatória confirmada por decisão de segunda instância (TRF 4ª Região), por mais de 580 dias, ocasião em que se privou do convívio de seus familiares, especialmente nos episódios da morte de seu neto e de seu irmão. Quem responderá pelas consequências nefastas e indeléveis à vida do ex-Presidente?

Não se pode tolerar que qualquer ser humano possa ser refém de um Judiciário punitivista, que põe de lado as regras e os princípios legais e constitucionais para condenar a qualquer custo, doa a quem doer. Oxalá tenhamos mais e mais decisões como a do ministro Fachin.

*Marcelo Aith  é advogado, especialista em “Blaqueo de capitales” pela Universidade de Salamanca – Espanha, e professor convidado na pós-graduação de Direito Militar da Escola Paulista de Direito (EDP).