O Projeto de Lei (PL) nº 2.337/2021 propõe extinguir o chamado “Juro sobre o Capital Próprio” (JCP) - artigo 9º da Lei 9.249/95. Entretanto, para se entender os reflexos dessa proposta é preciso compreender a natureza e a razão de ser do JCP – intimamente ligadas aos efeitos da correção monetária (CM).
Imagine-se que uma cantina italiana possuía a seguinte regra: seus dois únicos pratos – A e B – devem ser servidos com molho, pois a clientela o considera essencial para o valor gastronômico dos pratos. Em 1995, suas sócias decidem revogar a regra da obrigatoriedade do molho, decidindo que seria servido apenas com o prato A e não mais com o B. Porém, sabendo do desestímulo à venda do prato B, as sócias bolaram uma regra inteligente para não terem de admitir que voltaram atrás na decisão de revogar a nova regra: se o cliente desejar, ao pedir o prato B, o molho será servido à parte, cabendo-lhe colocá-lo no prato. Com isso mantém-se a nova regra de que o prato B é servido sem molho e, ao mesmo tempo, agrada-se a clientela. Isto é o JCP.
Vamos transpor o exemplo para o campo da técnica. Desde 1978, as demonstrações contábeis das empresas (as massas da cantina) eram ajustadas pela CM (o molho das massas), incluindo, a partir da correção integral, a atualização de passivos de empréstimos e seus juros (capital de terceiros) – o prato A - e a atualização dos itens do PL (capital dos “próprios”) – o prato B, fundamental para evitar a tributação pelo IRPJ do “Lucro Nominal (1)” (composto por um lucro fictício, fruto da CM).
Em 1995, a correção monetária dos balanços foi extinta. Entretanto, como os juros de empréstimos mantém um componente de CM intrínseco à precificação do custo do recurso tomado (vide a taxa Selic) e são dedutíveis do IRPJ, tomar recursos bancários (o prato A) é fiscalmente vantajoso. Mas, sem a CM do balanço, o mesmo deixaria de acontecer com o capital próprio (PL). A solução (inteligente) dada à época foi permitir, como opção da empresa, calcular um “juro” sobre esse capital (ou seja, servir o prato B com o molho à parte, se desejado pelo cliente), chamado de JCP, dedutível do IRPJ/CSLL, equiparando-o para fins fiscais (embora com imitações) com o juro bancário, de forma a não desestimular o uso de recursos dos sócios na estrutura de capital das empresas (ou seja, não desestimulando a venda do prato B, item importante para o desempenho da cantina).
Segundo a Exposição de Motivos do PL (item 2.3), o governo propõe a extinção do JCP, sob o argumento simplista de que se verificou que “o endividamento continua a ser a forma mais atrativa de financiamento da expansão empresarial, contrariando a ideia de que a medida aumentaria a atratividade de investimento em capital”. Ou seja, por constatar o governo atual que a cantina ainda vende mais o prato A do que o prato B, conclui, num silogismo equivocado, que o prato B (o volume de capital próprio que financia empresas no Brasil) é irrelevante para o sucesso da cantina!
Ora, primeiramente, isso é uma falácia, pois muitas empresas fazem uso do JCP (a exemplo do que mostra o estudo do Prof. Ariovaldo dos Santos (2)). Em segundo, isso força a clientela a (a) optar pelo prato A (optar por empréstimo bancário, cujo juro é dedutível do IRPJ/CSLL), desprezando B, frustrando o aumento de arrecadação desejado pelo governo com o fim do JCP ou (b) a procurar outra cantina, em que o prato B venha com molho (por exemplo, investir no exterior, diminuindo o investimento interno). Não sendo possível mudar de cantina, o cliente comerá o prato B sem molho, mas terrivelmente insatisfeito (ou seja, pagará mais IRPJ/CSLL, sem nenhum fundamento econômico justificável). A proposta de extinção do JCP como medida de aumento da arrecadação, portanto, deve ser cuidadosamente analisada pelo Congresso Nacional.
*Fabio Cunha Dower é advogado, mestrando na FEA/USP e Especialista em Direito Tributário pelo CEU/SP. Consultor Tributário da Miguel Silva & Yamashita Advogados.