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Opinião

Por que manifestações que pedem o fechamento do Supremo Tribunal Federal ou do Congresso Nacional, ou a instauração de uma ditadura abusam da liberdade de expressão e rompem com o jogo democrático? Existem três tipos de resposta a essa questão.

A resposta mais fácil é que não devemos usar nossa liberdade de expressão para pedir o fim das instituições que, em última instância, precisam garantir essa e outras liberdades, quando sentimos que são violadas. Temos, sim, liberdade e até o dever de protestar contra leis e decisões injustas, bem como contra autoridades que abusam do seu poder. Contudo, defender a extinção dos Poderes da República é, no mínimo, um contrassenso. Pois, mesmo quem entende que a liberdade de expressão é a liberdade de dizer tudo o que se pensa, “e quem se ofender que me processe”, ainda precisa das leis e de um judiciário reconhecido para decidir sobre a questão.

Para esses, a democracia é como um jogo de futebol profissional, em que os adversários farão de tudo para vencer, inclusive jogar sujo e tentar ludibriar o juiz. Mas, quem passar dos limites e tratar o outro time como inimigo a ser destruído, pode ir para o chuveiro mais cedo. E ainda que o juiz seja um péssimo profissional, ou mesmo corrupto, é necessário apelar para... a Justiça Desportiva. Sem juiz não tem jogo, da mesma forma que sem a Lei, o Judiciário ou a fiscalização entre os poderes, não existe liberdade de expressão, ou qualquer outra liberdade. O que existe é a vontade de quem manda e a obediência de quem serve. E como sabemos, o presidente do clube não é seu dono, e nem mesmo os sócios o são diretamente, pois há um conselho que faz a mediação entre sócios e o presidente.

O segundo tipo de resposta à questão sobre manifestações que pedem o fechamento do Supremo, do Congresso ou uma ditatura abusam da liberdade de expressão e rompem com o a democracia, é porque entendemos que nossa liberdade termina onde começa a liberdade dos outros. E quando os interesses de uns conflitam com os interesses dos outros, sejam amigos ou adversários, é preciso estabelecer entre si regras mínimas para que as desavenças sejam resolvidas e a bola possa rolar, ainda que isso implique chamar um terceiro para ser juiz.

Para esses, a democracia é como um jogo de futebol society, que não por acaso pode ser traduzido para “futebol sociedade”. Neste caso, há um respeito pressuposto às regras de quem aluga o campo, seja no horário de funcionamento, seja nas vestimentas mínimas e condutas proibidas, mas o que importa mesmo é como os dois times decidem jogar.

Caso haja falta ou desentendimentos, a resolução partirá desse acordo prévio e do debate livre entre os jogadores, sem ofensas ou brigas, haja juiz ou não. Para que o jogo tenha um resultado justo e seja prazeroso para todo mundo, ainda que muito competitivo, vai depender das relações entre os jogadores e de como resolverão os conflitos em campo. E se tudo correr bem, ainda pode rolar uma cervejinha no final. O que não pode é pedir o fechamento do espaço, não pagar o aluguel ou violar as regras mínimas de uso. Senão nem jogo tem e todos sairão descontentes.

O terceiro tipo de resposta que podemos dar é o mais difícil, pois representa uma forma ainda mais profunda de encarar a liberdade de expressão e a democracia. Neste caso, dizemos que manifestações pela derrubada das instituições e por golpes de Estado, em nome de quem quer que seja, abusam da liberdade de expressão e rompem com a democracia porque a liberdade de expressão só existe em ambientes em que todos nós, mais ou menos diferentes, reconhecemos as liberdades uns dos outros como válidas.

Como diz Anshuman Mondal, professor de literatura e estudos pós-coloniais na Universidade de East Anglia, na Inglaterra, isso implica entender a liberdade de expressão não com a pergunta “qual é o meu limite de dizer tudo aquilo que eu quero dizer?”, mas “o que é bom dizer?”. A ideia de que só sou livre para me expressar na medida em que os outros me reconhecem como tal e vice-versa, é um apelo para que recuperemos um sentido ético de liberdade de expressão e de democracia.

Contudo, não se deve confundir essa ideia ética com “a moral e os bons costumes”, pois ela envolve o embate e a convivência de diferentes visões, além da possibilidade de mudanças. Neste caso, também o Estado só é válido quando reconhece e realiza uma mediação sensível dessa reciprocidade, muitas vezes conflituosa, entre as liberdades e valores como respeito, solidariedade e igualdade. Para quem pensa assim, o jogo democrático está mais próximo da modalidade “futebol callejero”, ou futebol de rua, cujo movimento, com ligas na América Latina, na África e Europa, busca associar o esporte à educação popular com o propósito de promover transformação social e formar lideranças juvenis.

No futebol callejero não há juiz. As equipes, sempre mistas, decidem antes do jogo quais serão as regras básicas: se o lateral é batido com o pé ou com a mão, se vale o goleiro pegar com a mão bola recuada, se há impedimento etc. Além disso, espera-se que no jogo as equipes se relacionem consigo mesmas e entre si com respeito e solidariedade e participação entre todas jogadoras e jogadores. O jogo então transcorre normalmente, com a vitória valendo somente um ponto para a equipe vencedora. Mas, o resultado final só é definido num terceiro tempo, em que as duas equipes debatem, com a ajuda de uma mediadora ou mediador, sobre se houve ou não respeito, solidariedade e participação. E como cada um desses quesitos vale um ponto, o placar pode virar mesmo após o fim da partida. Não adianta querer ganhar a qualquer custo ou impor sua opinião no grito. Ambas as equipes devem decidir, por consenso ou por voto, o placar final.

Por isso, mesmo depois desse marcante 07 de setembro, nas ruas ou nas redes sociais, podemos escolher ser jogadores profissionais, de futebol society ou callejero. Só não dá pra acabar com o jogo pedindo a expulsão do juiz ou dizendo que é o dono da bola. Pois, ao final, vença quem vencer, o jogo (ou a luta) precisa continuar.

*Vitor Blotta é professor doutor no Departamento de Jornalismo e Editoração na Escola de Comunicações e Artes (ECA/USP)e coordenador do grupo de pesquisa Jornalismo Direito e Liberdade ECA/IEA - USP