O dia 20 de outubro de 2021 ficará marcado no cenário jurídico-político brasileiro pela apresentação e leitura do relatório da “CPI da Pandemia”. O senador Renan Calheiros apresentou um portentoso trabalho com mais de 1,1 mil páginas, que imputam inúmeros crimes ao Presidente da República e outros envolvidos e sugere o indiciamento de todos. Acompanha o relatório final um robusto conjunto de elementos informativos que poderão ser utilizados como prova pelo Procurador Geral da República, autoridade constitucionalmente competente para manejar denúncia contra o Presidente, nos crimes comuns, acobertados pela prerrogativa de foro (“foro privilegiado”).
O relatório propõe o indiciamento do Presidente da República pela prática, em tese, dos seguintes crimes: a) epidemia com resultado morte; b) infração de medida sanitária preventiva; c) charlatanismo; d) incitação ao crime; e) falsificação de documento particular; f) emprego irregular de verbas públicas; g) prevaricação; h) crimes contra a humanidade; e i) crimes de responsabilidade (violação de direito social e incompatibilidade com dignidade, honra e decoro do cargo). Foram indiciadas dezenas de outras pessoas, autoridades públicas, servidores públicos e empresários, dentre elas os filhos do Presidente e alguns Ministros de Estado.
O relatório foi aprovado pelos demais integrantes da CPI e será encaminhado para o Procurador Geral da República, que tem duas alterativas constitucionalmente legítimas para seguir: denunciar o Presidente da República pelos crimes que foi indiciado ou determinar o arquivamento pela ausência de justa causa para a propositura da ação penal.
Alguns integrantes da “CPI da Pandemia”, bem como os juristas que auxiliaram na elaboração do relatório, têm sinalizado que podem manejar ação penal privada subsidiária da pública, na hipótese de o Procurador Geral da República arquivar as informações trazidas no relatório final. Isso é possível? O que vem a ser a tal “ação penal privada subsidiária da pública”?
Iniciando pela última pergunta: a ação penal privada subsidiária da pública nada mais é do que uma legitimação extraordinária conferida ao ofendido para que proponha ação penal em crime que é de iniciativa pública. As ações penais públicas são de iniciativa exclusiva do ministério público (princípio da oficialidade), nos termos do artigo 129, I, da Constituição da República. Todavia, em situações de inércia do Ministério Público em oferecer denúncia ou requerer o arquivamento do inquérito ou das peças de informação, nasce para o ofendido a possibilidade de propor “queixa substitutiva”.
Como regra, em relação aos réus soltos (como no caso dos indiciados pela CPI), o Ministério Público teria que oferecer a denúncia ou determinar o arquivamento em 15 dias. Passados esse prazo, sem qualquer solicitação de diligência, determinação de arquivamento ou oferecimento de denúncia, poderá o ofendido a apresentar “queixa substitutiva”. Portanto, somente poderá propor na hipótese de inércia do MP. No caso da “CPI da Pandemia”, somente poderá ser proposta a ação penal subsidiária da pública se o Procurador Geral da República, Augusto Aras, ficar inerte, entretanto se determinar, por exemplo, o arquivamento do relatório final nada poderá ser feito. Absolutamente nada!
Qual será o comportamento de Augusto Aras? O Procurador Geral da República, em regra, diante da robustez dos elementos de informação produzidos pela “CPI da Pandemia”, deveria promover a denúncia contra o Presidente da República, tendo em vista o princípio da obrigatoriedade (ou da legalidade) que norteia o sistema penal brasileiro. Aury Lopes Júnior, em sua obra, Direito Processual Penal, destaca com precisão: “A ação penal de iniciativa pública está regida pelo princípio da obrigatoriedade, no sentido de que o Ministério Público tem o dever de oferecer a denúncia sempre que presentes as condições da ação anteriormente apontadas (prática de fato aparentemente criminoso – fumus commissi delicti; punibilidade concreta; justa causa)”.
Entretanto, mesmo diante das provas que evidenciam a presença dos elementos necessários para a propositura da ação penal contra o Presidente da República, o PGR pode se posicionar pelo arquivamento – que ninguém me ouça acredito que irá arquivar – e desse posicionamento não cabe o ajuizamento da “queixa substitutiva” como vem alardeando alguns integrantes da CPI e, também, os juristas que auxiliaram na elaboração do relatório final. Assim, em que pese o brilhante trabalho do relator Renan Calheiros, a sequência, ao menos no âmbito interno (justiça brasileira), está nas mãos de Augusto Aras. Oxalá ele tenha a Constituição como seu guia e não se omita diante da gravidade dos fatos apurados.
*Marcelo Aith é advogado, Latin Legum Magister (LL.M) em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ensino e Pesquisa – IDP, especialista em Blanqueo de Capitales pela Universidade de Salamanca e professor convidado da Escola Paulista de Direito