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Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT.

Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT. Foto: Divulgação

Foto: Divulgação Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT. Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT.

Após a leitura do conto “O homem que sabia javanês”, de Lima Barreto, uma série de pensamentos ocorrem a quem se deixa entreter pela narrativa em seus quadros de sentido. Uma leitura fácil e a primeira é: como é fácil enganar as pessoas que não sabem muito, mais ainda, como é fácil enganar quem acha que sabe... Uma segunda leitura, essa com mais profundidade, demonstra as faces do individualismo, porque, quando um indivíduo sabe que os outros não sabem, há aí uma chance de sucesso. Claro, é necessário dizer que o conto é ambientado no Brasil de 1920 e, por consequência, o que se chama por individualismo hoje é um pouco distinto, uma vez que se mudam os tempos, permanecem os vícios parcialmente.

O coletivo garantiu a sobrevivência da espécie humana por milênios, proporcionou estágios de progresso civilizacional já superados, mas que importaram significativamente para o atual momento sócio-histórico. O próprio ser humano foi definido por Aristóteles, em sua “Política”, como animal social justamente por seu caráter gregário. Não só isso, a comunicação é contingencialmente coletiva, pois sempre que se diz, diz-se a alguém, mesmo que esse seja apenas imaginário. A própria noção de sociedade é necessariamente de um coletivo organizado, é gerenciada por instâncias coletivas, aqui implicada a política.

Contudo, se o coletivo é tão forte e tão importante, qual a razão do individualismo crescer vertiginosamente? O conjunto de razões pode encher livros e mais livros e, inclusive, gerar cursos para ensinar sujeitos a serem menos individualistas... Uma das possíveis razões encontra-se na concretude do indivíduo e no virtualismo do coletivo. Isso não é difícil de explicar, tampouco o é de entender. Carece de atenção e da própria memória posta em marcha.

O indivíduo é concreto, o coletivo é virtual, pois ninguém vive o todo, apenas a si. O virtual, por sua vez, não deixa de existir, mas o faz como efeito de relações de causa entre material e imaterial. Alguns exemplos podem ajudar na compreensão dessa diferenciação. A política é virtual, o político (indivíduo eleito) é concreto; o passado e o futuro são virtuais, o hoje é concreto; as leis são virtuais, o delito é concreto. Em outras palavras, o virtual é muito importante e causa efeitos no plano concreto da existência. Todavia, o que isso quer dizer sobre o crescente aumento do individualismo?

Agora, enfim, pode-se dizer das experiências que praticamente todos já tiveram ou ainda têm. Sabe aquele colega de trabalho insuportável? Ou aquele chefe que é uma “mala sem alça”? Conhece aquele vizinho que faz barulho quase toda manhã e todo final de semana, atormentando sua vida? Já viu o treinador físico da academia sempre dando moral para as moças, sempre as ajudando? Sabe aquele professor que não entendeu que o sistema de ensino brasileiro está falido há tempos e continua persistindo em suas provas, exercícios, redações e trabalhos sem fim para o aluno ser aprovado automaticamente ao final do ano letivo? Já viu o mecânico que nem atende direito seu cliente porque sua fila de carros na retífica está gigante, mas ele é o único confiável? A lista é extensa demais. Pois bem! Quaisquer dessas experiências somadas às enormes filas altamente burocráticas que se enfrenta em serviços públicos ou privados faz com que o individualismo não pareça ruim, ao contrário.

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em sua obra póstuma “Retrotopia”, explica, com riqueza de detalhes, porque as gerações anteriores têm um saudosismo de seus tempos áureos, chamando esse saudosismo (traduzido em “no meu tempo”) de retrotopia. Invertendo um pouco a retrotopia, pode-se dizer que quem leu contemporaneamente “O homem que sabia javanês” tem saudade da época em que o coletivo era mais dócil, mais amável e mais inteligente, já que para ser enganado era necessário saber javanês.

*Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da Universidade Federal do Tocantins.