Passivos de Reserva Legal em propriedades rurais – áreas de vegetação dentro de propriedades que deveriam ser conservadas, mas foram desmatadas – já somam 18 milhões de hectares, uma extensão maior que a do Estado do Acre. Já os passivos de APPs (Áreas de Preservação Permanente) chegam a 3,2 milhões de hectares em todo o Brasil, segundo novo levantamento do Termômetro do Código Florestal, desenvolvido pelo IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) e apresentado em Belém durante a COP30.
Além dos passivos, a ferramenta também identifica um total de 78 milhões de hectares declarados no CAR (Cadastro Ambiental Rural) como propriedades privadas, mas que se sobrepõem a áreas protegidas, como unidades de conservação e terras indígenas. Por se tratar de um sistema autodeclaratório, o CAR tem sido usado de forma irregular para a grilagem de terras. Ao todo, 122 mil cadastros foram cancelados em 2025 por violarem as normas de ordenamento fundiário. Marabá e São Félix do Xingu, polos da agropecuária no Pará, são os municípios com maior número de CARs negados de todo o Brasil.
“O Cadastro Ambiental Rural é dinâmico. Por isso, é importante termos esse controle ativo das mudanças no cumprimento do Código para podermos diferenciar o que aumentou por causa de um desmatamento do que resulta de uma subnotificação prévia e que agora estamos identificando. Sabendo onde estão essas áreas de passivo, podemos aplicar o que está previsto na lei, que inclui diversas possibilidades de restauro produtivo para que o produtor possa se regularizar e obter renda”, destaca Jarlene Gomes, pesquisadora e coordenadora de projetos em Política Pública do IPAM.
As áreas de Reserva Legal, APPs e CARs são definidas pelo Código Florestal Brasileiro, aprovado em 2012. De acordo com a lei, propriedades na Amazônia devem manter 80% de sua vegetação nativa conservada; no Cerrado, o percentual mínimo é de 20%, ou 35% no caso de imóveis situados dentro da Amazônia Legal. As APPs, por sua vez, protegem áreas de interesse ambiental, como topos de morros, nascentes e margens de rios.
No total, a Amazônia concentra 52% do passivo de Reserva Legal do país, com 9,5 milhões de hectares, além de 25% do passivo de APP, cerca de 800 mil hectares. O Cerrado, segundo maior bioma brasileiro, tem 5,5 milhões de hectares de áreas que deveriam ser Reserva Legal e estão irregularmente ocupadas, além de 962 mil hectares de APPs degradadas – 15% a mais do que a Amazônia, apesar da savana ter metade da área. Pará, Mato Grosso, Maranhão e Rondônia são os Estados com maior extensão irregularmente ocupada.
Desmatamento Legal
Além dos passivos, o Brasil possui 70 milhões de hectares de excedentes de vegetação nativa – áreas dentro de propriedades rurais e assentamentos que poderiam ser legalmente desmatadas, mas estão de pé. Cerrado e Caatinga somam 62% de todo esse excedente, mas vêm registrando redução desde 2020, especialmente em regiões de fronteira agrícola. Apesar de serem áreas cujo desmatamento é permitido pela legislação, a perda de grandes extensões de excedente também gera impactos ambientais severos, sobretudo em regiões já desestabilizadas por décadas de desmatamento.
No Mato Grosso, por exemplo, a área preservada dentro de propriedades rurais além do mínimo exigido por lei chega a 5,6 milhões de hectares, enquanto no Pará essa extensão corresponde a 2,5 milhões de hectares. Nesse contexto, projetos como o Conserv buscam estimular a proteção dessas áreas, remunerando produtores pela conservação de parcelas que poderiam ser legalmente desmatadas. Desde 2020, o projeto já realizou pagamentos a 23 produtores, contribuindo para preservar mais de 20 mil hectares de vegetação nativa e manter um estoque de 600 toneladas de carbono.
“O Código Florestal pode ser visto como uma lei fiscalizadora, mas também como uma oportunidade para o produtor. Se eu tenho uma área que poderia legalmente desmatar, mas não desmatei, posso negociar isso como uma cota de Reserva Legal ou receber pagamento por serviços ambientais. Existem várias opções para essas áreas, que inclusive podem ser manejadas com sistemas agroflorestais e plantio de frutíferas, por exemplo, garantindo novas opções de renda sem destruir a vegetação”, detalha Jarlene.
Em um país que depende das chuvas para irrigar lavouras e gerar energia, a proteção da vegetação nativa, fundamental para manter nascentes, estabilizar o regime de chuvas e proteger o solo, ganha ainda mais destaque. De acordo com estudo realizado pelo IPAM na Estação de Pesquisa Tanguro, 30% dos imóveis rurais do Centro-Oeste já operam fora do ideal climático devido ao desmatamento e às mudanças climáticas, podendo chegar a 50% até 2030.
“Zerar o passivo da Reserva Legal significaria mais chuva no Brasil. Isso quer dizer que teríamos menos risco de quebra de safra, por exemplo. A aplicação do Código é para proteger a natureza, mas também é para proteger a água e a produção de comida no país”, aponta Raoni Rajão, pesquisador da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e membro do comitê técnico do Observatório do Código Florestal.
Desastres ambientais
O aumento na área de passivos também tem sido um fator determinante para a severidade de eventos climáticos extremos, como enchentes, tempestades e secas. O desmatamento de encostas e margens de rios, áreas que deveriam estar protegidas por APPs, por exemplo, resulta no assoreamento dos cursos d’água, facilita o alagamento de cidades, desprotege o solo e torna as regiões mais vulneráveis a ventanias e tempestades.
“Uma vez que o Código Florestal é devidamente implementado, ele também se torna uma agenda de mitigação e adaptação às mudanças climáticas. Ele mitiga porque, se tenho uma área conservada, estou estocando carbono e mantendo serviços ambientais funcionando. No lado da adaptação, ele protege contra os efeitos diretos da crise, preservando as águas, o solo e as pessoas, ao criar barreiras e reguladores naturais contra eventos climáticos extremos”, defende Jarlene.
O efeito destrutivo das enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul em 2024 foi potencializado pelo fato de o Estado possuir mais de 158 mil hectares de APPs não conservadas, o equivalente a 28% de sua área de proteção permanente. Em Santa Catarina, região atingida por tempestades e tornados no início de novembro, o passivo de APP chega a 201 mil hectares (34% do total protegido), enquanto o de Reserva Legal soma 45 mil hectares. (Ipam)

