A decisão do ministro Gilmar Mendes na ADPF 1.259/DF, ao reconstruir a história e o sentido do impeachment, toca em uma dimensão essencial do constitucionalismo brasileiro contemporâneo: a preservação da independência judicial e o combate ao uso abusivo de instrumentos de responsabilização política. Mas, ao mesmo tempo em que identifica corretamente os perigos de intimidação do Judiciário, citando fenômenos como o "constitutional hardball" e o “legalismo autoritário” de Kim Lane Scheppele, a discussão deixa evidente que não há, na Constituição de 1988, qualquer fundamento para restringir a legitimidade acusatória ao Procurador-Geral da República.
Pelo contrário: a tese defendida por alguns autores da ação viola princípios fundamentais, subverte a lógica da separação de poderes e cria um gargalo institucional incompatível com um regime democrático plural.
A Constituição é explícita ao definir quem julga (o Senado Federal, art. 52, II), mas não quem acusa. O silêncio do constituinte é deliberado. E a doutrina constitucional é firme ao reconhecer que o impeachment é um instrumento político, cuja deflagração não pode ser condicionada à vontade de um único órgão.
Paulo Brossard foi cristalino: “A acusação não é monopólio de órgão algum. É inerente ao instituto que sua deflagração esteja aberta a canais múltiplos (...). A iniciativa é difusa, porque difusa é a responsabilidade republicana".
(O Impeachment, p. 92-94)
Assim, não há base constitucional para atribuir ao Ministério Público, e menos ainda ao Procurador-Geral, um poder de veto sobre o funcionamento do mecanismo de responsabilização política.
Ao concentrar no PGR a legitimidade acusatória, cria-se o que José Afonso da Silva chama de sistema de “competências repartidas” às avessas, um monopólio funcional incompatível com a própria lógica da Constituição de 1988. Como ele lembra: “Nenhum Poder pode pretender ser o guardião exclusivo da Constituição.”
Esse tipo de concentração, como alerta Bruce Ackerman, gera “pontos de estrangulamento institucional” capazes de paralisar mecanismos essenciais de accountability. Cass Sunstein vai na mesma direção ao advertir que um impeachment dependente de um único ator estatal se converte em um ritual simbólico, sem força de contenção real.
A experiência europeia também rejeita modelos de monopolização. Canotilho enfatiza que poderes de fiscalização recíproca “não podem depender da discricionariedade de um único órgão”. E Pérez Royo, ao interpretar o juicio político espanhol, ressalta que ele é instrumento de “controle democrático plural, nunca sujeito a monopolização orgânica”.
Keith Whittington, referência norte-americana no tema, resume com precisão: “A independência dos poderes não se preserva limitando as vias de controle, mas impedindo que um único ator possa bloqueá-las. O impeachment não é monopólio de ninguém.”
A decisão de Gilmar Mendes reforça corretamente que votos jurisdicionais não podem justificar processos de impeachment e que a independência judicial é pilar do Estado de Direito. Mas essa mesma lógica impede que se concentre a iniciativa acusatória nas mãos do Procurador-Geral da República.
Proteger o Judiciário não significa blindá-lo por meio de mecanismos de veto individual, e sim fortalecer a credibilidade das instituições por meio do devido processo legal, quóruns qualificados e filtros substantivos.
Alexandre de Moraes sintetiza esse equilíbrio: “Independência não é imunidade. Garantias não se convertem em impedimentos absolutos de responsabilização, tampouco criam exclusividade acusatória.”
E, na tradição republicana, como lembrava Hamilton no Federalista nº 65, o impeachment deve permanecer disponível contra quem atente, por atos graves, contra o pacto constitucional — mas sua porta de entrada não pode ser artificialmente fechada, tornando o Estado refém da vontade de uma única autoridade.
A democracia brasileira não exige reduzir legitimados, mas impedir abusos. Não demanda concentrar poder, mas difundir mecanismos de controle.
E, sobretudo, não admite que um agente, por mais relevante que seja, detenha o monopólio de iniciar ou bloquear um dos instrumentos mais sensíveis do constitucionalismo moderno.
Restringir o impeachment de ministros do Supremo à iniciativa exclusiva do Procurador-Geral da República carece de fundamento constitucional, contraria a experiência comparada e constitui grave distorção do modelo republicano. Em um regime que se pretende plural e democrático, não há espaço para monopólios acusatórios.
*Marcelo Aith é advogado criminalista. Doutorando Estado de Derecho y Gobernanza Global pela Universidad de Salamanca - ESP. Mestre em Direito Penal pela PUC-SP. Latin Legum Magister (LL.M) em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ensino e Pesquisa – IDP. Especialista em Blanqueo de Capitales pela Universidad de Salamanca.

