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Opinião

Eduardo Maurício é advogado no Brasil, em Portugal, na Hungria e na Espanha.

Eduardo Maurício é advogado no Brasil, em Portugal, na Hungria e na Espanha. Foto: Divulgação

Foto: Divulgação Eduardo Maurício é advogado no Brasil, em Portugal, na Hungria e na Espanha. Eduardo Maurício é advogado no Brasil, em Portugal, na Hungria e na Espanha.

A decisão do Tribunal Superior de Zurique de anular provas extraídas da plataforma criptografada SKY ECC, por violação de territorialidade, ausência de suspeita individualizada e inobservância das regras suíças de vigilância, marca um momento decisivo no debate global sobre admissibilidade e validade de evidências digitais. Trata-se de um precedente que reforça limites jurídicos em um contexto de investigações transnacionais cada vez mais dependentes de dados e cooperação policial internacional.

Proferida em 15 de agosto de 2025, a decisão examinou a admissibilidade de dados obtidos por autoridades francesas no âmbito de operações contra a SkyECC, amplamente utilizada por grupos criminosos em diferentes países. A corte acolheu integralmente a argumentação da defesa e declarou as provas inadmissíveis, afirmando que houve violação direta da soberania suíça. 

Isso ocorreu porque as autoridades francesas desencadearam uma manipulação da rede que levou dispositivos SkyECC localizados em território suíço a transmitir suas chaves criptográficas para um servidor sob controle francês, sem qualquer pedido de cooperação ou autorização judicial da Suíça. O tribunal classificou o procedimento como uma medida coercitiva estrangeira ilegal, determinando a exclusão absoluta das provas e rejeitando qualquer possibilidade de ponderação com base na gravidade dos fatos ou na utilidade investigativa.

O tribunal também destacou que, no momento das medidas francesas, não havia suspeita concreta contra o réu, o que torna ilegítima qualquer forma de vigilância sob a legislação suíça, que exige suspeita individualizada para autorizar medidas secretas. As ordens emitidas na França eram tão abrangentes que geraram interpretações divergentes em toda a Europa: alguns tribunais entenderam que miravam operadores da plataforma, outros concluíram que o alvo eram todos os usuários, ou até mesmo “pessoas desconhecidas”. Em nenhum desses casos, argumentou o Tribunal Superior de Zurique, o limiar mínimo de suspeita exigido pelo direito suíço teria sido atingido. 

Em situações em que medidas recaem sobre pessoas indeterminadas, eventuais achados envolvendo terceiros configurariam meras descobertas incidentais, insuficientes para legitimar a vigilância. O tribunal anotou ainda que algumas das condutas investigadas nem sequer constituiriam crimes aptos a justificar medidas de interceptação no país.

A decisão também enfrentou o debate sobre o direito da defesa de acessar dados brutos das comunicações interceptadas, tema que tem ganhado relevo nos tribunais europeus. Embora não tenha fixado uma tese, a corte observou que o material fornecido no caso não corresponde ao conceito de “dados brutos” definido pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, apontando para futuras discussões sobre transparência, cadeia de custódia e integridade da prova digital. 

O julgamento desencadeou uma forte reação pública e política na Suíça, acompanhada por esforços de comunicação destinados a sugerir que a decisão representaria ameaça à segurança nacional. Apesar dessa pressão, o tribunal manteve o foco na legalidade estrita e na proteção das garantias processuais, afastando o argumento utilitarista de que a eficácia da investigação justificaria atropelos a limites territoriais e legais.

A decisão de Zurique projeta efeitos para além da Europa. Em um contexto no qual investigações criminais dependem cada vez mais da circulação de dados entre países, a corte reforçou que cada Estado deve aferir, de forma autônoma, a validade da prova à luz de sua legislação interna, em consonância com orientação do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Provas digitais obtidas no exterior, portanto, não são automaticamente válidas: sua admissibilidade exige respeito às regras nacionais sobre interceptação, cadeia de custódia e limites territoriais.

Num cenário em que infraestruturas tecnológicas e plataformas criptografadas operam acima das fronteiras, a decisão evidencia o papel essencial da advocacia criminal internacional. A atuação técnica e coordenada entre defesa, peritos e especialistas em diferentes países torna-se decisiva para expor violações, garantir acesso a material íntegro e assegurar que a prova digital cumpra os requisitos legais necessários. O caso suíço demonstra que a prova digital não está imune ao devido processo legal e que, quando nasce de violações à soberania, ao direito interno ou à falta de suspeita individualizada, sua exclusão é não apenas possível, mas obrigatória.

*Eduardo Maurício é advogado no Brasil, em Portugal, na Hungria e na Espanha. Doutorando em Direito – Estado de Derecho y Governanza Global (Justiça, sistema penal y criminologia), pela Universidad D Salamanca – Espanha. Mestre em direito – ciências jurídico criminais, pela Universidade de Coimbra/Portugal. Pós-graduado pela Católica – Faculdade de Direito – Escola de Lisboa em Ciências Jurídicas. Pós-graduado em Direito penal econômico europeu; em Direito das Contraordenações e; em Direito Penal e Compliance, todas pela Universidade de Coimbra/Portugal. Pós-graduado pela PUC-RS em Direito Penal e Criminologia. Pós-graduando pela EBRADI em Direito Penal e Processo Penal. Pós-graduado pela CBF (Confederação Brasileira de Futebol) Academy Brasil –em formação para intermediários de futebol. Mentor em Habeas Corpus. Presidente da Comissão Estadual de Direito Penal Internacional da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas (Abracrim).