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Opinião

Foto: Divulgação

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Cientistas de todo o mundo têm insistido num ponto ainda pouco discutido: a relação da Covid-19 e as atividades humanas sobre o planeta. É cada vez mais forte a compreensão na academia que o vírus se disseminou a partir de animais, assim como também é crescente o entendimento de que a destruição da natureza expõe a humanidade a riscos crescentes. O aquecimento global é uma realidade que está à nossa porta ameaçando a sobrevivência da vida humana no planeta.

Na contramão dos alertas da comunidade científica, o Brasil segue forte na destruição da floresta amazônica. Estudos apontam que estamos nos aproximando do ponto do não-retorno. O que seria isso? É o ponto em que desmatamento contínuo pode transformar a Amazônia em uma grande savana, destruindo boa parte da vida animal e liberando toneladas de CO2 na atmosfera. Neste ponto, a floresta perderia a sua capacidade de manter-se viva.

Nos últimos dias de 2019 o presidente Jair Bolsonaro assinou a Medida Provisória (MP) 910, que prevê a legalização da invasão de terras públicas na Amazônia entre 2011 e dezembro de 2018. A proposta legaliza a transferência de terras públicas para invasores, grileiros e premia a criminalidade ambiental. Por meio de um instrumento legislativo, a MP a ser votada não somente premia a delinquência ambiental: ela importa na dilapidação do patrimônio público porque viabiliza, a preços irrisórios, a subtração do patrimônio da União Federal para os beneficiários.

A proposta do governo era ruim, mas ficou pior este ano, quando o relator da proposta, o senador Irajá Abreu (PSD/TO), quis beneficiar ainda mais os grileiros (quem rouba terras públicas) e criminosos ambientais com mudanças no texto, como o aumento de 1.500 para 2.500 hectares da área máxima a ser regularizada sem necessidade de vistoria; com a redução nos custos para titulação de médias e grandes propriedades; com a permissão para que invasores de terras que venderam as suas há mais de dez anos possam regularizar novas invasões. Ou seja, o relatório reforçou a lógica de que invadir terra pública é um bom negócio.

A MP 910 foi mais longe: pela segunda vez em apenas três anos, estende de forma substantiva, o marco temporal brasileiro que permite legalizar ocupações de terras públicas. Mais legitimação da prática de grilagem e desmatamento ilegal impossível. A sua aprovação importa no desalinhamento das políticas fundiária e ambiental, que deveriam caminhar juntas.

A MP 910 é desastrosa, premia médios e grandes invasores de terras públicas. Péssima para o meio ambiente e muito ruim na implementação: as terras poderão ser tituladas com base na declaração do ocupante, sem necessidade de vistoria prévia para averiguar in loco quem de fato está ocupando a área. Mais do que evidente a fragilidade do controle, que é absolutamente propício a legitimar a apropriação privada do patrimônio público nacional.

Qual o outro nome disso, senão corrupção?

Por tudo isto, a aprovação da MP 910 é um desserviço ao país. Ela transforma um dos principais ativos brasileiros, a floresta amazônica, num custo econômico e comercial. Na contramão de todos os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil desde a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (RIO 92), a MP 910 agrava os problemas brasileiros. Por exemplo, ela dificulta um acordo comercial com a União Europeia; atrapalha investimentos internacionais no instante que o mundo e as empresas cada vez mais exigem o cumprimento de compromissos da sustentabilidade.

A importância da agenda ambiental está por demais clara nos fóruns e organismos internacionais, onde o desmatamento da Amazônia é mencionado explicitamente como potencial obstáculo para a colação dos produtos brasileiros no exterior. As discussões sobre mudanças climáticas chegaram com contundência ao mundo dos investimentos: grandes investidores têm sido explícitos quanto à incorporação de sustentabilidade como critério para a avaliação de risco e alocação de recursos.

À medida em que o desmatamento e as queimadas aumentam na Amazônia, em que diminuem os esforços para a fiscalização e repressão a crimes ambientais, em que se arrasta a implementação do Código Florestal e aumentam as disputas por questões fundiárias, o Brasil transforma um dos seus maiores ativos, a conservação de seus recursos naturais, num custo. Na verdade, estamos criando mais um componente para o já conhecido custo Brasil, estabelecendo mais um motivo para afastar investidores e parceiros comerciais.

O Brasil precisa urgentemente mudar o tratamento das questões ambientais. Não podemos mais continuar dilapidando o patrimônio ambiental da nação num instante que o meio ambiente se torna o mais importante ativo num mundo cada vez mais ameaçado pelo cataclismo das mudanças climáticas. Valorizar nossos recursos naturais não é somente um dever ético para as gerações futuras: é condição de sobrevivência econômica.

Não é por menos que a aprovação da MP 910 é contrária ao interesse público; é um golpe à sociedade brasileira já fragilizada pela pandemia, pela grave crise econômica e social; é a evidência também de que todos precisamos estar atentos aos movimentos daqueles que não se importam de prejudicar o país corrompendo o interesse público em benefício de poucos. É preciso dizer não à pilhagem.

*Mário Lúcio de Avelar é procurador da República, mestre em direito público e formado em economia