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Opinião

Mário Lúcio de Avelar é procurador da República e bacharel em ciências econômicas

Mário Lúcio de Avelar é procurador da República e bacharel em ciências econômicas Foto: Divulgação

Foto: Divulgação Mário Lúcio de Avelar é procurador da República e bacharel em ciências econômicas Mário Lúcio de Avelar é procurador da República e bacharel em ciências econômicas

Não faz muitos anos que a Lei n.º 11.952/2009, que institui normas para a regularização fundiária de terras ocupadas da União, foi objeto de alterações. Até 2016, apenas as áreas públicas federais ocupadas até 30 de novembro de 2004 poderiam ser regularizadas sem licitação, desde que cumpridos os requisitos legais. Em 2017, a Lei foi alterada permitindo regularizar sem licitação de áreas de até 2.500 hectares e ocupadas até 22 de dezembro de 2011. Foram várias as facilidades criadas para a regularização fundiária. No aspecto temporal, houve a ampliação do prazo limite de ocupação; no aspecto espacial, permitiu-se a aplicação das regras atuais para todo o território nacional; no aspecto procedimental, normas foram flexibilizadas.

A prorrogação do prazo limite para a regularização de terras da União Federal ocupadas por particulares não é uma concessão trivial: essa alteração costuma significar um mau presságio para o patrimônio público federal e para o meio ambiente. Invariavelmente leis nesse sentido costumam anistiar o crime de invasão de terra pública e incentivar a continuidade de mais ocupações, e alimentar o ciclo do desmatamento ilegal. De fato, o desmatamento funciona como prova e combustível do reconhecimento de posse: é o crime ambiental contraditoriamente é que dá a prova da ocupação; a prorrogação do prazo limite de ocupação estimula novas ocupações, mais desmatamento, e naturalmente a busca por mais direito sobre a terra.

Nos últimos dois anos, novamente o Congresso Nacional foi palco de diferentes projetos para mudanças na lei de regularização fundiária. Em 2019, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) apresentou a Medida Provisória (MP) 910/2019 como uma solução para os antigos problemas fundiários, ambientais e sociais. Acrescentou que ela tinha o objetivo de modernizar e simplificar a legislação ao introduzir o uso e observação por satélite (sensoriamento remoto). Em nota disse que a MP visava apoiar principalmente os pequenos produtores e incentivar a preservação ambiental.

A realidade da MP 910/2019 parece revelar propósitos bem distantes. Não sem razão ela foi recebida com muitas críticas pela sociedade civil, especialistas, membros do Ministério Público e entidades ligadas à proteção do meio ambiente. Até mesmo entidades ligadas ao agronegócio, com destaque à Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, emitiram notas técnicas contrárias. Além de alterar o limite temporal de reconhecimento dos ocupantes para 2014, a MP 910/2019 permitiu a regularização por autodeclaração de áreas com até 15 módulos fiscais (o módulo varia de 5 a 110 hectares dependendo da região). Não faltaram, portanto, motivos para temer a privatização criminosa do patrimônio público pelo viés da venda a preços irrisórios de terras pública; a certeza de que se incrementaria o caos fundiário no País e a convicção de que se estaria passando um claro recado para a criminalidade de que o crime contra o patrimônio púbico e o meio ambiente compensa.

Os efeitos na sociedade causados pela pandemia da Covid-19 e a pressão exercida pela sociedade civil levaram ao esgotamento dos prazos de votação da MP no Congresso Nacional e a sua consequente perda de validade. Com o esgotamento do prazo da MP, o deputado Zé Silva, relator da MP medida na Câmara dos Deputados, apresentou o PL 2633/2020 retirando pontos polêmicos e atendendo vários pontos reivindicados pela sociedade. Apesar de o PL 2633/2020 encontrar-se em fase de tramitação e de ter sido admitido sob regime de urgência na Câmara dos Deputados, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) e o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento emprestaram apoio ao PL 510/2021 apresentado pelo senador Irajá Abreu no dia 22 de fevereiro de 2021.

O exame acurado do PL 2633/2020 revela que a sua aprovação importa riscos de nos depararmos com a titulação de áreas públicas submetidas a conflito; de que a lei ambiental seja descumprida ao se permitir que o desmatamento ilegal faça prova de ocupação da terra; de que a transferência das terras públicas se dê, como sempre, mediante o pagamento de valores muito abaixo daqueles praticados no mercado. Para alguns, no entanto, a submissão do PL 2633/2020 ao processo legislativo teria o mérito nada desprezível de impedir um mal maior: a aprovação do PL 510/2021, do senador Irajá Abreu, e que é indubitavelmente de interesse direto de desmatadores e grileiros de todo o País.

Um exame mais acurado do texto do PL 510/2021 indica que ele é praticamente uma cópia do segundo parecer apresentado pelo Senador Irajá Abreu por ocasião do exame da MP 910/2019. Ele repete aproximadamente 85% do seu texto original sob o mesmo pretexto: o de resolver o problema dos agricultores e empreendedores familiares rurais. De fato, ele não considera que o procedimento de regularização de terras ocupadas aprofunda o ciclo vicioso que existe desde a colonização, que ele alimenta a indústria da grilagem de terras no País e que ele empurra o custo do crescente desmatamento de nossas florestas para toda a sociedade brasileira.

Tudo isso é muito grave, sobretudo se considerado que o País já dispõe de legislação suficiente para titular, de forma célere, os imóveis ocupados por agricultores que ocuparam terras públicas com a dispensa de vistoria prévia para áreas de até quatro módulos fiscais (até 400 hectares na Amazônia). Ou dado não menos importante é que a atual legislação, se aplicada, permitiria atender 95% das pessoas que possuem imóveis à espera de titulação. Não há dúvida de que o PL 510/2021 tem endereço certo: os grandes invasores de terras públicas que pretendem ser contemplados com uma reforma agrária às avessas.

Mas que alterações traz o PL 510/2021?

Um primeiro ponto a ser observado é que o PL 510/2021 anistia o crime de invasão de terra pública em benefício daqueles que ocuparam terras entre o final de 2011 e 20143 ; em segundo lugar ele incentiva a continuidade do processo de invasão de áreas públicas e o desmatamento, criando o direito de preferência na venda por licitação a quem estiver ocupando área pública após dezembro de 2014, sem limite de data de ocupação. Isso para as hipóteses em que não é possível a regularização direta da área; um terceiro ponto é que ele estipula uma série de benefícios em favor de ocupantes de médios e grandes imóveis constituídos de terra pública que abrange a redução de valores cartorários à renegociação de dívida do crédito rural.

Os objetivos estabelecidos no PL 510/2021 parecem claros: dar impulso ao mercado de terras no País a partir da incorporação de novas áreas a serem destacadas do patrimônio público mediante o processo de apropriação primitiva de riqueza, em que a riqueza deriva não da produção econômica em si mesma, mas de expropriação da riqueza coletiva que não estava inserida no modo de produção capitalista.

O efeito maléfico do PL 510/2021 é múltiplo: ele não somente anistia as invasões que já ocorreram, como também gera a expectativa de que novas invasões continuarão a ser regularizadas. O mais grave é que a sua simples apresentação ao Congresso Nacional constitui estímulo para que pessoas inescrupulosas promovam novas invasões e destruição ambiental mediante um ciclo que se retroalimenta e no qual a certeza da impunidade se consolida como um dos principais motores do desmatamento, impedindo inclusive o surgimento de atividades produtivas de baixo impacto ambiental na região.

Os danos causados pela aprovação do PL 510/2021 são induvidosos e nem sempre de fácil mensuração. Estudos indicam que ele irá anistiar 5737 parcelas entre 2012 e 2018, e legitimará invasões futuras de outras 16 mil áreas já incluídas na base do Incra, mas que atualmente não possuem evidências de uso agropecuário significativo. As mudanças que provocará nas regras fundiárias alcançam extensões de terras maiores que as de muitos países. Embora os números variem eles são impressionantes: para o Imazon o PL 510/2021 ameaça pelo menos 19,6 milhões de hectares de áreas florestais não destinadas na Amazônia, que podem ser ocupadas e desmatadas na expectativa de regularização6 ; outros autores indicam que o PL tem o potencial de permitir a ocupação de 2,4 milhões de hectares de terras públicas, a um valor de mercado superior a R$ 2,2 bilhões considerando apenas os imóveis que se encontram na base do Incra. O mais grave é que ele abriria caminho para a ocupação desorganizada de 43 milhões de hectares, dos quais 24 milhões atualmente são cobertos por florestas públicas.

Seja como for, o PL 510/2021 de autoria do Senador Irajá Abreu tem endereço certo: facilitar o acesso às terras públicas aos médios e grandes produtores, que somam apenas 4% da fila de análise do Incra. Além de beneficiar um grupo pequeno de invasores de terras públicas, o PL traz consigo elevado risco de viabilizar a titulação fraudulenta de grandes extensões de terra em prejuízo de pequenos produtores e populações tradicionais e de destruir grandes porções de florestas públicas.

Os caminhos trilhados pelo PL 510/2021 não nos conduzirão ao almejado desenvolvimento econômico, social e ambiental que almejamos. Ao contrário, a sua aprovação importará na destruição de nossas florestas, no empobrecimento maior de parcela da nossa população e no enriquecimento de um pequeno grupo de produtores rurais.

Por tudo isso, é absolutamente importante que o PL 510/2021 seja rejeitado pelo Congresso Nacional.

Em meio a tantas notícias ruins, o povo brasileiro não merece mais essa.

*Mário Lúcio de Avelar é procurador da República. Bacharel em ciências econômicas pela PUC/GO e Mestre em Direito Ambiental pela Université de Perpignan, França.