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Opinião

Foto: Divulgação

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Iniciando-se a Semana Santa, período introspectivo para os cristãos, oportunidade em que se relembra as atrocidades feitas contra Jesus e culmina com sua morte de cruz no calvário, farei uma análise sobre o julgamento de Cristo e a prática do lawfare. O que lawfare significa?

O termo se refere à junção da palavra law (lei) e o vocábulo warfare (guerra), e, em tradução literal, significa guerra jurídica. Podemos entender lawfare da seguinte maneira: uso ou manipulação das leis como um instrumento de combate a um oponente desrespeitando os procedimentos legais e os direitos do indivíduo que se pretende eliminar. Em termos ainda mais gerais pode ser entendido como o uso das leis como uma arma para alcançar uma finalidade política que normalmente não seria alcançada se não pelo uso do lawfare.

Atualmente, o lawfare se caracteriza pelo emprego de manobras jurídico-legais com a finalidade de causar dano a adversário político. Mas o que isso tem a ver com o julgamento e a condenação à morte de Jesus Cristo? Tudo, absolutamente tudo, senão vejamos.

Nos três anos de vida pública de Jesus ele colocou o dedo nas mazelas impostas pelos líderes políticos judeus, contestando suas leis e formas de aplicação, bem como suas tradições e o modo segregacionista que tratavam os outros povos, como os samaritanos, por exemplo. Jesus pregava uma vida mais igualitária, com a diminuição das desigualdades sociais. Jesus pregava a misericórdia e o amor, o perdão e a compaixão. Jesus arrastava multidões por onde passava e isso começou a incomodar, enormemente, os grupos políticos-religiosos da época.

Os líderes políticos eram os saduceus, os doutores da lei e os fariseus. O grupo dos saduceus era formado pelos grandes proprietários rurais (detentores do domínio econômico) e pela elite sacerdotal: tinham o poder nas mãos e controlavam a administração da justiça no Tribunal Supremo (Sinédrio). Os doutores da lei eram responsáveis pela interpretação das Escrituras (juristas da época). Já os fariseus eram os que dirigiam a vontade do povo, na medida em que imponham a eles os rigores das Escrituras e ditavam as regras de comportamento.

Jesus Cristo veio para romper com esse establishment e, assim, gerou muita inveja e receio entre os líderes políticos, que tramavam uma força “legal” de prendê-lo. A gota d’água para esses líderes foi a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém no “Domingo de Ramos”, que marcou o início da aplicação do lawfare contra Cristo. Explico.

Conforme se extrai dos evangelistas, no domingo anterior ao da Páscoa, Jesus, acompanhado dos seus discípulos (os apóstolos e demais seguidores), foi recepcionado pelos judeus de Jerusalém como rei. Ao entrar na cidade muitas pessoas estenderam ao chão seus mantos para Jesus passar e outros o saudaram com ramos, prática usada para recepcionar os líderes políticos, conforme se extrai do livro do Reis.

Jesus, em síntese, ao ingressar como rei dos Judeus (Messias) confronta com o centro político da sociedade judaica simbolizada por Jerusalém e pelo Templo, sede do poder econômico, político, ideológico e religioso. Jesus traz consigo a inversão de um sistema de sociedade apoiado na violência da força militar que defende os privilegiados. O povo aclamou como aquele que traz o reino da verdadeira justiça e a notícia espalhou por toda a cidade.

Com receio do grande apoio que Jesus teve do povo judeu, os líderes se reuniram e tramaram para prendê-lo e condená-lo. Para tanto, manipularam as leis, desrespeitando os procedimentos legais e os direitos do acusado previstos na “lei mosaica” (nítida aplicação do lawfare). Para isso, iniciaram cooptando um dos apóstolos, oferecendo propina para entregar Jesus. Jesus foi preso à noite e levado a presença do sumo sacerdote (Caifás), que fez alguns questionamentos sobre seus seguidores e sua doutrina. Em resposta aos questionamentos de Caifás, Jesus respondeu: “Eu falei abertamente ao mundo; eu sempre ensinei na sinagoga e no templo, onde todos os judeus se ajuntam, e nada disse em oculto. Para que me perguntas a mim? Pergunta aos que ouviram o que é que lhes ensinei; eis que eles sabem o que eu lhes tenho dito.” Jesus ao responder dessa forma agiu nos limites da lei judaica, que estabelecia que todo prisioneiro em julgamento tinha o direito de ser confrontado com seus acusadores, fato que não proporcionado a Jesus.

Nessa mesma noite, ao arrepio do regramento da lei judaica que vedava a realização de julgamento à noite, Jesus foi sentenciado pelos integrantes do Sinédrio (Tribunal Supremo). Depois de muita luta para achar testemunhas de acusação (os delatores daquela época), duas apareceram e apontaram como suposto crime o fato de Jesus ter dito que poderia derrubar o Templo e reconstruí-lo em três dias. Uma aberração dizer que tal fala é crime contra a lei judaica.

Durante o julgamento, tendo em vista a fragilidade abissal da tese acusatória, Jesus fez uso do direito ao silêncio. Então Caifás, violando a proibição legal de exigir de alguém que testificasse em seu próprio caso senão voluntariamente, e de sua livre iniciativa, pediu uma resposta de Jesus e, também, exerceu a potente prerrogativa de seu ofício de sumo sacerdote, para colocar o acusado sob juramento, como testemunho diante do tribunal sacerdotal. Uma manipulação atroz contra seu suposto inimigo político (lawfare). Caifás pergunta se Jesus é filho de Deus e obtém a seguinte resposta: “Tu o disseste; digo-vos, porém, que vereis em breve o Filho do Homem assentado à direita do Poder, e vindo sobre as nuvens do céu. (...) “Eu sou o que tu disseste.” Diante da resposta o evangelista Lucas relata: “Então o sumo sacerdote rasgou as suas vestes, dizendo: Blasfemou; para que precisamos ainda de testemunhas? Eis que bem ouvistes agora a sua blasfêmia! Que vos parece? E eles, respondendo, disseram: É réu de morte”. Assim se deu a primeira condenação pautada no lawfare da história da humanidade.

Jesus foi condenado pelos integrantes do Sinédrio por representar um risco político aos saduceus, aos doutores da lei e aos fariseus. Mas a condenação, ilegal, pelo Tribunal Supremo não seria suficiente para aplacar a crescente liderança de Jesus, por isso os líderes políticos-religiosos o levaram a presença de Pilatos e exigiram que o representante do império romano consultasse o “povo” se queriam Jesus sentenciado à morte de cruz. Com isso, os líderes judeus passaram a bola para Pilatos, porque a “lei mosaica” não permitia a condenação à morte, de qualquer pessoa, baseada na sua confissão, a menos que fosse amplamente apoiada por testemunhas dignas de fé, fato não observado na espécie. Ou seja, os representantes políticos deram um drible na lei para condenar Jesus à morte.

Jesus Cristo foi condenado e morto não por ter cometido um crime ou até mesmo uma blasfêmia contra o Deus dos judeus, mas por representar um risco para a establishment político. Os líderes políticos manipularam a lei para condená-lo sem provas com o objetivo de aniquilá-lo como uma nova liderança. Ou seja, os líderes judeus fizeram uso indevido dos recursos jurídicos para fins de perseguição política (lawfare). Qualquer semelhança com algum julgamento contemporâneo não é mera coincidência.

*Marcelo Aith é advogado especialista em Direito Público e professor convidado da Escola Paulista de Direito (EPD).