O Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) deu provimento à apelação do Ministério Público Federal (MPF) e manteve a condenação da União e da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) ao pagamento de danos morais coletivos por violações aos direitos do povo indígena Avá-canoeiro, do Araguaia, Tocantins. Na ação movida pelo MPF, o órgão busca reparar a dívida histórica do Estado brasileiro com essa comunidade, alvo de captura, deslocamentos forçados e dizimação, entre outras violências, e assegurar meios de sobrevivência até que os remanescentes do grupo sejam reinstalados em seu território tradicional.
A União e a Funai já haviam sido condenadas em primeira instância, mas recorreram da sentença ao TRF1. O MPF também recorreu pedindo a reforma parcial da sentença para que o valor da indenização estabelecida pelo Judiciário não ficasse vinculado à aquisição de novas terras e pudesse ser livremente utilizado pela etnia. O Tribunal rejeitou o recurso das rés, e acatou o do MPF, mantendo a condenação e fixando em dois mil salários-mínimos o valor da indenização.
Remoção forçada
Segundo narrou o MPF, o povo Avá-canoeiro, atualmente residente na Ilha do Bananal (TO), sofreu remoção forçada do território que historicamente ocupava, realizada pela União por meio da Funai, e foi alocado indevidamente em terras que, além de não guardarem traço de tradicionalidade, já estavam ocupadas pelo povo Javaé, inimigos históricos com os quais foram forçados a conviver, e por particulares.
De acordo com o relatório antropológico no qual o MPF se baseou, a mudança, permeada de violências físicas e simbólicas, afetou substancialmente o modo de sobrevivência física e cultural do grupo, além da sujeição a atos de agressão praticados pela outra comunidade, por possuidores de imóveis rurais e pelos próprios agentes do Estado. A situação, ocorrida há 40 anos e que persiste até os dias de hoje, contribuiu para a dizimação de parte considerável do povo.
“A retirada forçada dos indígenas das terras por eles ocupadas, efetivada pela Funai, desrespeita um dos principais direitos assegurados aos indígenas antes mesmo da Constituição de 1988, que é a ocupação tradicional de suas terras, como elemento imprescindível à manutenção de sua sobrevivência física e cultural, considerando a própria relação que os une”, defendeu o MPF em parecer. “Trata-se, assim, de ato que provoca, gradativamente, o desaparecimento desse modo de ser e viver dos povos indígenas, fulminando um importante elemento componente de uma República pautada no respeito às diferentes manifestações culturais”.
Danos morais coletivos
Para o MPF, não apenas a expulsão dos Avá-canoeiro e o reassentamento forçado em outra aldeia, mas também a injustificada demora do poder público na instauração de procedimento administrativo de demarcação do território, afetaram fortemente a comunidade indígena, atingindo valores fundamentais do grupo, tornando imprescindível a condenação da União e da Funai ao pagamento de indenização. A demarcação, iniciada em 2011, ainda não foi concluída.
“Há que se considerar que a própria incerteza quanto ao futuro – dado que a expulsão da área tradicionalmente ocupada e a inacreditável demora na instauração (e conclusão) do procedimento parecia evidenciar que o direito em questão não seria reconhecido aos referidos povos indígenas – já causou profundo sofrimento a quem considera a natureza sagrada, com ela vivendo em íntima comunhão”, argumentou o MPF.
Histórico do caso
De acordo com o relatório desenvolvido pela antropóloga da Funai Patrícia de Mendonça Rodrigues, a presença e a invasão do território indígena por parte de pecuaristas, levou os Avá-canoeiro, povo com histórico de resistência ao contato com os não-índios, a serem caçados e dizimados, obrigando-os a se refugiarem nas matas da Ilha do Formoso, entre os rios Javaés e Formoso do Araguaia.
Segundo o relatório, em decorrência dos conflitos entre a comunidade e os fazendeiros, a Funai instalou, em 1973, uma Frente com o objetivo de retirar o grupo étnico da região e transferi-lo para a aldeia Canoanã, de posse dos Javaé. Os remanescentes da etnia passaram então a viver como subordinados e derrotados em condições graves de degradação física e moral, expostos à vulnerabilidade alimentar e à exclusão social, cultural e política, sendo considerados inimigos derrotados em guerra e cativos.
Atualmente, a população da etnia, dividida entre os três remanescentes do contato e as duas gerações que nasceram depois, somam 20 pessoas. O relatório antropológico ressalta que a língua de origem tupi-guarani se mantém viva até hoje, assim como uma cosmologia orientada pelo xamanismo e pelo discurso profético religioso, comum entre outros povos tupis-guaranis. “Tais práticas, entre outros exemplos significativos, configuram a manifestação de uma identidade e de um desejo explícito de continuar sendo Avá-canoeiro, apesar do cativeiro em terra alheia”, esclareceu a antropóloga. (MPF)