Para quem é mais novo, a menção de um anime talvez possa ser comum. Para quem não é tão mais novo, peço para que se lembre de casos próximos. Em uma cena emblemática de “Cavaleiros do Zodíaco”, o cavaleiro de ouro de Câncer visita o Mestre Ancião. Um diálogo é estabelecido entre os dois. Nele, o primeiro afirma que o bem é o mais forte, pois a História é contada pelos vencedores, ao passo que o segundo é categoricamente contrário, dizendo que o bem sempre é o bem, o mal sempre é o mal. No início da década de 1990, uma conversa dessa natureza, aparentemente feita para crianças, não dizia muita coisa, tão pouco parecia explicar as forças que nos movem.
Quando crescemos, aprendemos um pouco, adquirimos instrumentos mais precisos para pensar, algumas oposições são menos difíceis de “engolir”. Vejamos se há alguma razão nisso.
Roubar sempre é errado. Não existe roubo em legítima defesa. Quem pode trocar tal compreensão por outra? Vamos à realidade concreta. Quando alguém não devolve o troco certo, é roubo. Quando alguém empresta algo e não devolve, é roubo. Até aqui, os exemplos são bons para dizer que roubar é errado e passível de sanções descritas nos códigos legais. Mas quando um grupo toma terras, é roubo? Nesse caso, depende, se as terras são produtivas, é invasão, se não são produtivas, é ocupação.
Pensamos que pode haver relativizações, mas essa perspectiva é contrária à máxima: todos são iguais. George Orwell, em a Revolução dos bichos, já disse que “alguns são mais iguais do que outros”. Isso pode ser percebido em situações frequentes. Um político, quando envolvido em desvios de verbas públicas, a depender de seu espectro ideológico, pode ser um corrupto eleito ou um eleito corrupto. É importante destacar que os crimes cometidos por políticos são descritos por corrupção, um termo mais leve que hoje quase nada diz sobre comportamentos indevidos. Ora, política trata de corrupção elitizada; a pobreza rouba.
Sair do campo da política sempre é uma boa estratégia para manter a adesão do público. Desse modo, usando a mesma razão, vamos à situação de agressão de uma pessoa por outra. Uma briga, salvo aquelas combinadas, sempre alguém agride alguém, sempre tem um lado que precisa estar errado para o outro estar certo. Podemos afirmar que isso é lógico. Quando a força de repressão do Estado está em atuação ostensiva, aí é intervenção policial. A força nas mãos “certas” faz com que o outro esteja necessariamente errado.
Eis que é praticamente impossível sair totalmente do campo político, já que esse sempre se encontra no âmbito social, organizando-o.
Na infância, acreditava que o cavaleiro de Câncer estava totalmente errado. Mestre Ancião precisava estar certo. O bem é o bem, o mal é o mal. Contudo, após ler, estudar e observar a realidade concreta, onde tudo efetivamente acontece, tenho uma opinião diferente. Se conversarmos bem e sairmos da abstração, acredito que muitos entenderão o poder da convenção social. Porém, como Pangloss, personagem de Cândido ou o Otimismo, de Voltaire, quero acreditar no ideal tal como descrito por Mestre Ancião.
*Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da Universidade Federal do Tocantins.