A chegada de um filho é um dos momentos mais transformadores na vida de uma mulher. Nesse período de intensa vulnerabilidade física e emocional, o respeito à sua dignidade, autonomia e o direito a um parto humanizado são fundamentais. No entanto, a realidade de muitas mães no Tocantins e no Brasil ainda é marcada por desafios, como a negativa do direito a um acompanhante e a vivência da violência obstétrica. O Ministério Público do Tocantins (MPTO) tem atuado para garantir que os direitos das gestantes e parturientes sejam integralmente respeitados.
A presença de um acompanhante de livre escolha da mulher durante consultas, exames, trabalho de parto, parto e pós-parto imediato não é um favor, mas um direito assegurado pela Lei Federal nº 11.108/2005, atualizada pela Lei nº 14.737/2023, e reforçado por normativas do Sistema Único de Saúde (SUS). No Tocantins, a Lei Estadual nº 3.113/2016 (Estatuto do Parto Humanizado) e a Lei Estadual nº 3.385/2018 (que dispõe sobre medidas contra a violência obstétrica) também amparam esse direito.
“O parto é um momento marcado pela importância da chegada de uma nova vida. Vai muito além de procedimento médico, é um momento singular na vida da gestante, marcado por intensa vulnerabilidade física e emocional. Garantir que a mulher tenha um acompanhante durante esse processo não é apenas uma questão de conforto, mas um direito fundamental," explica a promotora de Justiça, Patrícia Delfino.
Ela reforça que "a presença do acompanhante não é mero formalismo, mas, em uma visão ampla, pode contribuir para a redução de complicações e o combate à violência obstétrica, já que a presença de uma pessoa de confiança auxilia a inibir condutas abusivas e assegura maior transparência no atendimento”.
Estudos científicos, endossados por entidades, como a Organização Mundial da Saúde (OMS), demonstram os benefícios clínicos e emocionais do apoio contínuo. A presença de um acompanhante está associada a trabalhos de parto mais curtos, menor necessidade de intervenções (como cesáreas e analgesias) e maior satisfação materna, além de reduzir a ansiedade e o medo.
Violência obstétrica: reconhecer para combater
A violência obstétrica é uma grave violação dos direitos humanos das mulheres. Ela pode ser física, verbal, psicológica ou mesmo uma omissão que desrespeite a mulher durante a gestação, parto, pós-parto ou abortamento. “Nem sempre é óbvia, pois muitas vezes é naturalizada ou justificada como procedimento médico necessário. Todavia, pode ser identificada quando a gestante se sentir desqualificada em suas queixas, desrespeitada, humilhada, coagida; ter seus desejos ou plano de parto ignorados sem justificativa técnica; ou sofrer procedimentos dolorosos sem explicação ou consentimento”, alerta Patrícia Delfino.
Alguns exemplos desse tipo de violência são a realização de procedimentos sem consentimento ou desnecessários, como episiotomias de rotina ou a manobra de Kristeller (pressionar o útero de uma gestante para tentar forçar a saída do bebê), comentários humilhantes ou negligência no alívio da dor. O plano de parto, no qual a gestante registra suas preferências, é uma importante ferramenta de comunicação e prevenção.
A cada duas, uma mãe sofre violência obstétrica
A dimensão do problema no país foi evidenciada pela pesquisa “Nascer no Brasil”, da Fiocruz (2011-2012). Esse estudo revelou que 30% das mulheres em hospitais privados e 45% daquelas atendidas pelo SUS relataram ter sofrido alguma forma de violência obstétrica. “Esses dados dimensionam a gravidade do problema e a necessidade contínua de vigilância e combate a essas práticas", diz a promotora de Justiça Araína Cesárea, titular da 27ª Promotoria de Justiça da Capital, que atua na área da Saúde. Uma nova edição da pesquisa 'Nascer no Brasil' está em andamento, ainda sem resultados.
Atuação do MPTO: da pandemia à fiscalização contínua
O Ministério Público do Tocantins tem um histórico de atuação na defesa desses direitos. Durante a pandemia da covid-19, quando o direito ao acompanhante foi suspenso em unidades de saúde no Tocantins, o MPTO interveio para reverter a proibição. “Assim como atuamos para garantir transparência e planejamento no acesso a leitos durante a pandemia, o Ministério Público exige que os serviços de saúde tenham protocolos claros e transparentes para o atendimento ao parto, assegurando o direito ao acompanhante e coibindo qualquer forma de violência obstétrica. A lei é clara, e seu cumprimento não é opcional", afirma Araína Cesárea.
Divulgação do direito ao acompanhante
Em março deste ano, a 27ª Promotoria de Justiça da Capital expediu uma recomendação à Secretaria Estadual de Saúde e à Secretaria Municipal de Saúde de Palmas. O documento, embasado na Lei nº 14.737/2023, cobrou a ampla divulgação do direito ao acompanhante em todas as unidades de saúde, a capacitação dos profissionais sobre o tema e a afixação de avisos claros sobre esses direitos.
"É fundamental que as unidades de saúde não apenas permitam, mas informem ativamente as mulheres sobre seu direito ao acompanhante e sobre como proceder em caso de sedação ou outras eventualidades previstas na lei. A recusa injustificada pode configurar, inclusive, um ato ilícito", ressalta a promotora.
Mortalidade materna e infantil
O MPTO também está atento à grave questão da mortalidade materna e infantil. Em dezembro de 2024, foi instaurado um inquérito civil público para apurar irregularidades quanto à ocorrência de casos de violência obstétrica e óbitos maternos no Hospital e Maternidade Dona Regina, em Palmas. A preocupação se justifica: dados recentes posicionam o Tocantins como o 8º estado brasileiro com a maior taxa de óbitos maternos em 2023, registrando 0,93 mortes para cada 100 mil habitantes, com um total de 14 óbitos maternos naquele ano.
"Esses números são um alerta grave e demonstram a urgência de ações efetivas. A saúde da gestante e da puérpera é uma prioridade sanitária, e evidências científicas mostram que a grande maioria dos óbitos maternos poderiam ser evitados com acesso a serviços de saúde de qualidade e atenção obstétrica segura e respeitosa. Cada vida perdida representa uma falha que precisa ser corrigida", adverte Araína Cesárea.
Paralelamente, os índices de mortalidade infantil também demandam ação contínua. O Tocantins ocupa a 11ª posição no ranking nacional de taxa de mortalidade infantil, com 19,45 óbitos de crianças menores de um ano por 100 mil habitantes. “Muitas dessas mortes, especialmente as neonatais (0 a 27 dias), estão diretamente relacionadas à qualidade da assistência ao pré-natal, ao parto e aos cuidados com o recém-nascido – momentos em que o direito ao acompanhante e o combate à violência obstétrica são cruciais", complementa a promotora.
Para ela, a mortalidade materna e a infantil são indicadores sensíveis da qualidade dos serviços de saúde. “Cada morte evitável é uma tragédia que nos impulsiona a atuar com mais rigor na fiscalização e na cobrança por melhorias. Garantir um parto seguro, respeitoso, com a presença do acompanhante e livre de violência, é fundamental para reduzir esses índices", avalia.
O inquérito civil público instaurado busca, portanto, não apenas apurar responsabilidades, mas também fomentar a implementação de protocolos e medidas eficazes para a redução da mortalidade materna e infantil no estado.
Como denunciar e buscar ajuda
Mulheres que vivenciarem violência obstétrica ou tiverem o direito ao acompanhante negado devem, primeiramente, tentar resolver a situação na administração do próprio hospital ou maternidade. Caso não obtenham êxito, é fundamental registrar a ocorrência e procurar os canais de denúncia.
“Os canais incluem a Ouvidoria do hospital/maternidade, Secretarias de Saúde (municipais e estaduais), Disque Saúde 136, Conselho Regional de Medicina (CRM) ou Enfermagem, Ministério Público e Defensoria Pública", orienta a promotora Patrícia Delfino.
Ela explica que é importante reunir provas, como cópia do prontuário médico, que é um direito garantido pela Lei Geral de Proteção de Dados, testemunhas, fotos ou vídeos, para a garantia de justiça e eventual reparação, para viabilizar a tomada de medidas pelos órgãos, para evitar a impunidade e mudar práticas hospitalares. (MPTO)