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Opinião

Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da Universidade Federal do Tocantins.

Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da Universidade Federal do Tocantins. Foto: Divulgação

Foto: Divulgação Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da Universidade Federal do Tocantins. Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da Universidade Federal do Tocantins.

No cerne da vida intelectual brasileira habita um sintoma persistente, tão silencioso quanto corrosivo: o viralatismo (termo usado na literatura brasileira por Nelson Rodrigues) que aponta para o complexo de inferioridade estrutural que orienta a relação brasileira com a produção cultural, científica e teórica, sobretudo a que vem da Europa e dos Estados Unidos. O diagnóstico é incômodo, porém necessário: no Brasil, a academia, salvo raríssimas exceções, ajoelha-se perante o que é escrito em inglês ou francês, crendo que a verdade (conhecimento legítimo) só pode ser dita com “sotaque” estrangeiro.

Esse fenômeno não é novo, pois remonta ao trauma colonial que marca a constituição do Brasil como nação periférica, dependente e epistemologicamente (termo que se refere à teoria do conhecimento) submissa. Os herdeiros de uma formação intelectual forjada na exegese das ideias alheias, tornaram-se especialistas em consumir, traduzir, aplicar e reverenciar teorias que vêm “de fora”. Desse modo, enquanto ignora-se ou descarta-se, por insuficiência simbólica, aquilo que emerge “de dentro”, das universidades, dos pensadores, da realidade brasileira, portanto.

No universo acadêmico, o viralatismo manifesta-se, então, em múltiplas formas: na citação desmedida de autores consagrados do hemisfério norte em detrimento de estudiosos latino-americanos; na compulsão por publicar em periódicos estrangeiros como passaporte para reconhecimento; na dificuldade em validar epistemologias locais, saberes indígenas ou afro-brasileiros como legítimos; e, talvez mais grave, na constante tradução cultural que o intelectual brasileiro faz de si para se tornar inteligível ao “olhar de fora”.

Há quem defenda que seguir o cânone euro-americano é uma exigência de qualidade, de universalidade ou de cientificidade. Ora, esse argumento desconsidera que o cânone é, antes de tudo, uma construção histórica e política. A “universalidade” da ciência ocidental, dita neutra, é frequentemente o nome limpo de uma geopolítica do saber que marginaliza vozes, apaga contextos e cristaliza assimetrias.

O efeito é perverso: uma geração de pesquisadores e estudantes brasileiros é formada não para pensar o Brasil, mas para pensar desde Foucault, com Bourdieu, à luz de Judith Butler, contra o capitalismo como em David Harvey, reimaginando a linguagem por Lacan, problematizando o sujeito como em Althusser... e jamais (ou quase nunca) a partir de Anísio Teixeira, Lélia Gonzalez, Abdias do Nascimento, Sueli Carneiro, Darcy Ribeiro, Gilberto Freyre, Milton Santos, Antônio Cândido, Mário Ferreira dos Santos, Marilena Chaui, entre tantos outros.

Não se trata de recusar o pensamento estrangeiro, mas de romper com a relação servil que se estabelece com ele. O diálogo é indispensável, mas precisa ser horizontal, crítico e situado. Para tanto é necessário perguntar: o que está em jogo quando a teoria só é levada a sério se publicada em inglês ou em francês? O que perdemos ao desprezar as singularidades de nossa experiência histórica, social e linguística em nome de uma suposta internacionalização?

O viralatismo acadêmico é também um problema de classe e de acesso. Quem tem domínio de línguas estrangeiras, contato com centros de pesquisa internacionais e trânsito em congressos no exterior acumula capitais simbólicos inacessíveis à maioria. A meritocracia acadêmica, nesse caso, torna-se uma geografia de privilégios disfarçada de competência.

O antídoto para esse complexo de vira-lata passa pela descolonização do saber. Não basta “incluir” autores brasileiros em nossas bibliografias; é preciso reconhecer que o pensamento crítico-reflexivo não possui nacionalidade e, principalmente, que a “periferia” do mundo também pensa, teoriza e inova. Isso implica revisitar nossos currículos (escolares e acadêmicos), repensar nossos critérios de avaliação, reconstruir nossa confiança intelectual.

É tempo de ousar pensar com nossas próprias “pernas”, mesmo que isso implique tropeçar no caminho. Afinal, o saber que transforma não é o que se curva ao outro, mas o que se confronta com o real e, desse confronto, extraí o conhecimento legítimo. O Brasil não precisa de intérpretes estrangeiros: precisa de vozes próprias e, mais do que tudo, de ouvidos que saibam escutá-las.

*Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da Universidade Federal do Tocantins.