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Meio Ambiente

Vista aérea do Pedral do Lourenço.

Vista aérea do Pedral do Lourenço. Foto: Antônio Cavalcante / Ascom Setran

Foto: Antônio Cavalcante / Ascom Setran Vista aérea do Pedral do Lourenço. Vista aérea do Pedral do Lourenço.

Nas margens do Rio Pindobal Miri, afluente do Rio Tocantins, onde o ritmo da vida é ditado pelas águas e pela sabedoria passada entre gerações, uma família ribeirinha encontrou nas redes sociais uma forma de contar sua história. Com bom humor, eles mostram o cotidiano de quem vive na e da floresta.

Mas o que era a celebração da cultura ribeirinha virou também resistência. A explosão do Rio Tocantins para o derrocamento do Pedral do Lourenço ameaça não só o território onde vivem, mas toda uma maneira de existir. O conteúdo que produzem nas redes pode estar com os dias contados. E junto com ele, tradições, memórias e modos de vida que não cabem em planilhas de impacto ambiental.

Nesta reportagem, ouvimos quem vive o rio todos os dias e, agora, teme perdê-lo.

Enquanto houver rio, haverá luta 

Na comunidade ribeirinha do Pindobal, em Cametá, no nordeste do Pará, o Rio Tocantins é mais do que um recurso natural: é estrada, fonte de alimento e centro de vida. Ali, em pequenas comunidades onde se chega apenas de barco, tudo gira em torno das águas. É pelo rio que se pesca, que se toma banho, que se lava roupa e que se sonha com o futuro. Mas esse futuro está sendo ameaçado.

O projeto de explosão do Pedral do Lourenço, um trecho rochoso de cerca de 43 km no leito do Rio Tocantins, prevê a utilização de explosivos para abrir caminho para grandes embarcações comerciais. Para os moradores do Pindobal, isso representa não apenas a alteração do curso do rio, mas a destruição de um modo de vida inteiro.

 Rio Tocantins. Foto: Tucurui / Reprodução

Maria Tunica Nascimento, de 23 anos, nasceu e cresceu em uma casa de palafita sobre o Pindobal Miri. Filha de ribeirinhos, ela aprendeu desde cedo que o rio é uma parte fundamental da vida de comunidades tradicionais. “Nós, sem o rio, não somos nada. O rio ajuda muita gente. Às vezes a gente só não passa fome por conta dele. Mas com a destruição do Pedral, o rio não vai mais ajudar ninguém”, lamenta.

A fala de Maria revela uma realidade dura: mesmo com o rio cheio de vida, já há famílias enfrentando dificuldades para garantir comida na mesa. Se o ecossistema do Tocantins for desequilibrado pelas explosões e obras de dragagem, a expectativa é que essa situação piore.

A alternativa para conseguir o alimento é buscar na cidade, mas isso está longe de ser uma tarefa simples. Para comprar arroz, farinha, carne ou qualquer outro mantimento, as famílias dependem de freteiros que fazem viagens noturnas de barco até Cametá.

“A gente sai daqui por volta da meia-noite. O barco vai devagar e chega lá pela manhã, umas 5 horas”, conta Maria. A travessia exige tempo, esforço e dinheiro. Só de combustível, são 8 litros de óleo diesel por viagem: quatro para ir e quatro para voltar. “É caro, ainda mais agora. E nem sempre a gente tem o dinheiro certo, então às vezes tem que se virar com o que tem aqui. E o que a gente tem é o que o rio dá”, conta a ribeirinha.

Pedral do Lourenço: a resistência que nasce nas palafitas 

O sobrinho de Maria, Alex Nascimento, também nasceu e cresceu na comunidade. Ele é o criador do perfil “Os Ribeirinhos”, com mais de 1 milhão de seguidores nas redes sociais. Mostrando a rotina da vida no interior com humor e simplicidade, Alex transformou seu conteúdo em uma poderosa ferramenta de denúncia. “A gente depende do rio pra tudo. Pescar, comer, viver. E quando fiquei sabendo da obra, fui atrás de informação. Tinha muita gente que já sabia, mas a gente aqui, que vive dentro do rio, tava sem saber de nada”, diz.

Alex lembra que, para os ribeirinhos de Cametá, o rio também tem importância cultural. “Todo ano, no dia 1º de março, tem a abertura da pesca. Vem gente de tudo quanto é lugar, é uma tradição nossa. Se destruírem o pedral, isso pode acabar”, lamenta. O ribeirinho também teme que a água do rio se torne imprópria para o uso. “A gente vai perder muita coisa. A pesca, o camarão, o banho. A água pode ficar contaminada. Isso muda completamente a nossa vida”, preocupa-se.

Embora a obra no Pedral do Lourenço seja apresentada como projeto de desenvolvimento econômico, os benefícios não chegam às margens do rio. Pelo contrário: os custos sociais e ambientais recaem sobre quem vive e depende da natureza. “A explosão do rio significa morte, destruição. Nada de bom”, diz Alex.

Ser ribeirinho, para ele, é muito mais do que morar perto do rio. É uma identidade construída com base na coletividade, na resistência e no pertencimento. “Ser ribeirinho é acordar cedo e respirar a natureza. É ser indígena, quilombola. É viver em comunidade. O Brasil sem o ribeirinho não é o Brasil”, conta.

Maria concorda. Para ela, não faz sentido deixar sua casa por causa de uma obra imposta sem diálogo. “Não era pra ser assim. Eles tinham que perguntar primeiro. Quando a gente soube, já estava tudo assinado. Independente do que aconteça, eu não vou deixar minha família. Meu pai tá aqui, minha mãe tá aqui. A gente não vai sair”, ponderou.

 Pedral do Lourenço. Foto: Portal Gedaia Amazônia / Reprodução.

Amazônia Submersa: o progresso que vem com explosivos 

No dia 26 de maio de 2025, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) concedeu ao Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) a licença autorizando o início da explosão do Rio Tocantins para viabilizar a Hidrovia Araguaia-Tocantins, que pretende facilitar o escoamento anual de até 60 milhões de toneladas de soja, milho e minério do Centro-Oeste até o porto de Barcarena. Segundo o Governo Federal, o objetivo da obra é garantir a navegabilidade do Rio Tocantins durante todo o ano, mesmo nos períodos de estiagem.

No entanto, apesar de incluir 32 condicionantes ambientais e sociais (como planos de gerenciamento de resíduos, monitoramento da água e do ar, entre outros), o licenciamento avança em meio a fortes críticas e questionamentos legais.

O Ministério Público Federal classificou a licença como ilegal, apontando o descumprimento de condicionantes judiciais anteriores e a ausência de consulta prévia, livre e informada às comunidades ribeirinhas, indígenas e quilombolas, conforme previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Embora o DNIT alegue que “realizou consultas às comunidades tradicionais e não tradicionais durante os estudos de campo para a elaboração do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e do Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), por meio de audiências públicas em cinco municípios e reuniões específicas com colônias de pescadores e moradores ribeirinhos”, organizações como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) denunciam que as medidas apresentadas não contemplam a real dimensão dos impactos ambientais e socioculturais.

O Departamento afirma que o “licenciamento ambiental em curso se refere exclusivamente ao trecho entre Marabá e Baião, no estado do Pará” e que “propôs alternativas aos pescadores, indicando novos locais de pesca e a previsão de indenizações financeiras durante o período de intervenção, mesmo nas áreas onde não haverá interferência direta da obra”.

Obra esta que, segundo o órgão, é “estratégica para a consolidação do Corredor de Exportação Centro-Norte”, ampliando a logística e reduzindo os cursos para a agroindústria.

As promessas de progresso não conseguem esconder a gravidade dos impactos ambientais previstos com a obra. As explosões subaquáticas colocam em risco a vida de peixes e quelônios, afetando espécies sensíveis ao som e à pressão, muitas em pleno ciclo reprodutivo.

 Família da comunidade do Pindobal. Foto: Reprodução / Redes sociais.

O trecho entre Santa Teresinha do Tauiri e a Ilha do Bogéa, hoje rico em biodiversidade, pode se transformar em um corredor estéril, com habitats destruídos, leito alterado e espécies endêmicas ameaçadas de desaparecer. Além disso, a dragagem e o uso de explosivos liberam sedimentos, metais pesados e resíduos tóxicos, comprometendo a qualidade da água e a saúde de quem dela depende.

A pressa em transformar o Tocantins em hidrovia, sem a consulta às populações tradicionais, revela uma lógica de desenvolvimento que prioriza a logística do agronegócio à custa da vida dos rios e dos povos que deles dependem.

“Eu sem o rio sou como um peixe fora d’água” 

Em Tucuruí, no sudeste paraense, o pescador Josias Pereira de Souza olha para a velha canoa, companheira de uma vida inteira de trabalho, como um mal presságio de um tempo sombrio que se aproxima. Ele não é apenas um trabalhador das águas. É também herdeiro de uma tradição que começou com o pai e que já passou para a terceira geração. “A primeira profissão que eu trago é a pesca. Meu pai foi pescador, me ensinou desde pequeno, e hoje meus filhos também aprenderam. É o que sabemos fazer. É o que somos”, conta.

Josias acompanha com desconfiança o avanço da obra de derrocamento do Pedral do Lourenço. Para ele, a promessa de progresso vendida pelo governo esconde um prejuízo imenso para quem vive do rio. “Não vejo com bons olhos. Essa detonação do Pedral não vai trazer benefício pra nós, mas sim malefício. Nós já vimos isso antes, com a construção da Hidrelétrica de Tucuruí. Prometeram muito e até hoje tem pescador que morreu esperando compensação, indenização. Muitos nunca receberam nada”, lembra o pescador.

A indignação de Josias não é apenas emocional: é jurídica. Ele cita a própria Constituição Federal, que assegura, no artigo 225, o direito de todos a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. “O governo fala muito em preservar a Amazônia, mas na prática não respeita o que tá escrito na lei. Recebe milhões para cuidar da floresta, mas libera licença para destruir o rio, que também é Amazônia”, conclui.

 Pesca de mapará em Cametá. Foto: Josias Pereira de Souza / Acervo Pessoal.

A crítica também é direcionada ao processo de licenciamento da obra, autorizado pelo Ibama com 32 condicionantes que, segundo ele, não foram cumpridas. “Nós entregamos o protocolo de consulta na mão da Mariana Vaini, coordenadora geral do DNIT, em uma reunião aqui na comunidade, mas nunca fomos ouvidos de verdade. Eles ignoraram completamente. Isso é desrespeito”, denuncia o pescador.

O Rio também sangra 

Para Josias, o impacto da obra vai muito além do barulho das explosões. “Eles dizem que vão usar sonar para espantar o peixe, cortina de bolha para sugar os resíduos… Mas nós conhecemos o rio. Sabemos que o peixe é curioso, ele vai se aproximar do barulho. Vai morrer. Os peixes vão sumir, e com eles, o nosso sustento”, diz.

O pescador lembra com carinho dos tempos em que acompanhava o pai nas pescarias. “Desde menino eu andava com ele na canoa. Eu era companheiro, via como se fazia. Me lembro do cardume de 1987, o maior que a gente viu por aqui. A gente pescou até perto de Imperatriz. Eram outros tempos”, lembra.

Hoje, Josias vê tudo isso ameaçado por uma lógica de desenvolvimento que exclui os ribeirinhos. Ao fim da conversa, ele faz um desabafo com a força de quem luta por dignidade e memória. “Eu já fui convidado pra sair daqui, pra morar em outro lugar. Mas eu digo: não. Eu tenho meu trabalho, eu tenho meu rio. Nosso ofício é antigo, é sagrado. Eu não consigo me imaginar longe da água. Eu sem o rio sou como um peixe fora d’água”, conta o pescador.

Na Amazônia, defender a permanência do Pedral do Lourenço não se trata apenas de resistência: trata-se de sobrevivência. Em tempos de grandes promessas de progresso, o grito de quem vive das águas segue sendo abafado. Mas ainda resiste, nos vídeos de celular, nas redes sociais, nas pescarias solitárias e nos banhos de rio, que por enquanto ainda são possíveis. Afinal, enquanto houver rio, haverá povo. E enquanto houver povo, haverá luta.