O episódio político de maior repercussão dos últimos anos no País, que monopolizou atenções de praticamente todos os segmentos da vida brasileira, foi, sem dúvida, o desfecho da ação penal que culminou com a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Certamente, pela posição e popularidade do personagem central.
Todavia, é importante atentar-se para outro aspecto de igual ou maior importância que merece análise e discussão.
Entre a deflagração do processo, com as primeiras investigações no âmbito da Operação Lava Jato, até a efetiva prisão decorreram quatro anos, prazo que pode ser considerado pequeno quando comparado com outros processos que se arrastam por anos e décadas e muitos terminam em prescrição da pena. No caso Lula a celeridade ocorreu porque o ex-presidente não mais se encontrava sob a proteção do instituto que tem sido justamente inculpado pelo grau de impunidade dos crimes políticos, o chamado Foro Privilegiado. Na mesma linha há outros nomes a serem lembrados, como o ex-senador Delcídio do Amaral e o ex-deputado e presidente da Câmara Federal Eduardo Cunha. Ambos perderam o mandato e, por conseguinte o privilégio, sendo processados, condenados e presos.
Porém, há muitos outros citados, delatados, investigados e até indiciados que continuam protegidos pelo dispositivo e a salvo da Justiça. Entre os nomes mais conhecidos os senadores Romero Jucá, Renan Calheiros, Gleisi Hoffmann, Fernando Collor, Aécio Neves, Agripino Maia, Edison Lobão e os deputados federais José Otávio Germano, Nelson Meurer, Aguinaldo Ribeiro, Arthur Lira, Lucio Vieira de Lima, entre outros. Nesse rol há também ministros e governadores, além de outros parlamentares, executivos e agentes públicos de menor status.
Foro privilegiado (formalmente “Foro por prerrogativa de função”) é um direito adquirido por algumas autoridades que ocupam cargos de responsabilidade pública e adotado em praticamente todos os países democráticos. No Brasil, no entanto, foi totalmente deturpado, não apenas no exagerado número de beneficiados como na precípua e constitucional finalidade. Segundo levantamento publicado na revista Exame, em 2017, o foro alcança 54.990 pessoas.
Além do presidente e do vice, têm direito a julgamento em instâncias superiores todos os ministros, os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, todos os governadores, prefeitos, senadores, deputados federais, juízes, membros do MP (federal e estaduais), chefes de missão diplomática permanente, ministros do STF, TST, STM, TSE e STJ, da PGR, do TCU e conselheiros de tribunais de contas estaduais, além de algumas categorias mais específicas e outras funções em que o foro é determinado pelas constituições estaduais.
O mais flagrante desvirtuamento do objetivo é o fato notório de ser utilizado para proteger políticos que enfrentam problemas de irregularidades administrativas e criminais e ficam na mira da Justiça, inclusive por crimes comuns. Para exemplificar essa situação basta lembrar o episódio protagonizado pela então presidente Dilma Rousseff que tentou nomear o ex-presidente Lula para a Casa Civil, que tem status de Ministério, como ‘salvo-conduto’, diante de iminente ordem de prisão. Mais recentemente, o presidente Michel Temer concedeu status de Ministério à Secretaria Geral da Presidência da República, nomeando para o cargo Moreira Franco, que havia sido denunciado pela Procuradoria Geral da República e poderia sofrer indiciamento; atualmente, Franco é ministro de Minas e Energia.
Está evidente que o instituto do foro privilegiado deveria ser extinto ou ao menos revisto para restringir sua abrangência aos cargos de presidentes da República, da Câmara, do Senado e do Supremo Tribunal Federal (STF), como era antes da Constituição de 1988. Isso somente será possível com a votação de uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional). Porém, não se pode esperar que o Congresso tome a iniciativa, uma vez que os parlamentares são parte diretamente interessada e aos políticos não interessa perder privilégio dessa dimensão.
Então, o foro privilegiado é um obstáculo no combate à impunidade, prolongando processos até a prescrição, convertendo-se em incentivo à criminalidade. E os políticos continuam com as mesmas práticas, pois sabem que podem contar com essa salvaguarda constitucional.
Outro exemplo do efeito protelatório do foro nas ações da Justiça Federal de primeira instância: na Lava Jato, inúmeros empresários - antes poderosos – foram julgados, condenados e presos, assim como diretores de estatais, gestores públicos, políticos e dirigentes partidários envolvidos nas operações e esquemas de corrupção e propinas.
O STF debate o assunto, mas a matéria está tramitando morosamente. Diante desse movimento no Supremo, o Congresso decidiu tratar do assunto, porém também vagarosamente.
Se o Supremo Tribunal Federal não restringir a abrangência do foro privilegiado a Operação Lava Jato será mais uma tentativa frustrada de moralizar o país
Acredito que há clima oportuno e favorável para a sociedade exercer pressão com manifestação popular nas ruas e mobilização pelas redes sociais, aliado influente nas reivindicações do povo. As entidades representativas da sociedade civil organizada igualmente devem se mobilizar, como formadores de opinião que são e poder de indução que possuem. Entendo, também, que a pressão deve ser direcionada ao STF, onde o foro é alvo de debate e a Corte tem se mostrado sensível, receptiva aos anseios populares. Nestes últimos dias ocorreu fato indicativo dessa sensibilidade. Diante de pressão através da mídia e redes sociais o Supremo decidiu colocar em votação o julgamento sobre o recebimento da denúncia contra o senador Aécio Neves.
Portanto, o momento é este e a oportunidade não deve ser perdida, em nome do restabelecimento da moralidade pública e da decência na atividade política.
*Luiz Carlos Borges da Silveira é médico, ex-ministro da Saúde, ex-secretário de Ciência e Tecnologia do Governo do Estado do Tocantins e ex-secretário do Desenvolvimento Econômico, Ciência e Emprego do Município de Palmas-TO