O Supremo Tribunal Federal (STF) , na sessão de julgamento do último dia 26 de setembro, por maioria de votos, decidiu, em sede de habeas corpus (HC 166.373), anular, parcialmente, o processo, determinando que o delator, na condição de réu no processo que apura eventual crime de organização criminosa (Lei 12.850/13), deve se manifestar antes do delatado, para que possa permitir a este o pleno exercício do contraditório e da ampla defesa, refutando as declarações trazidas pelo “colaborador”.
O delator, na dinâmica da Lei de Organização Criminosa, é um integrante “do bando” que resolve, “espontaneamente”, apontar quem são os demais componentes, bem como o “modus operandi” dos comparsas, possibilitando aos agentes do estado – Polícia Judiciária e o Ministério Público – desbaratar o crime, em troca de benesses legais.
Dessa forma, a declaração do delator traz imputação de crime a alguém – delatado - o qual tem constitucionalmente o direito de se defender das alegações. A questão posta no julgamento era aparentemente simples – tornou-se complicada pelos argumentos “ad terrorem” deduzidos por aqueles que defendem que o direito à liberdade e o respeito a ampla defesa são secundários ao serem cotejados com o combate a corrupção. Uma aberração para dizer o menos!
Na sistemática processual penal o acusado tem o direito, inalienável, de falar por último, para que possa exercer efetivamente o contraditório e a ampla defesa, garantias fundamentais do ser humano. Alguns incautos podem dizer, mas o delator não é réu tal como o delatado? Com efeito, o delator é réu, porém com status jurídico diverso do delatado, pois passa, com a delação, a condição de réu-colaborador, que tem interesse em atingir os demais acusados com a sua “versão”.
Simplificando ainda mais a questão, o delatado terá que se defender, também, das alegações deduzidas pelo Réu-colaborador, que passa, assim, a condição de um assistente da acusação (não do assistente da acusação tecnicamente), haja vista que suas declarações encaminham, como regra, as investigações.
O eminente professor da PUC do Rio Grande do Sul e criminalista de escola, Aury Lopes Junior, analisando a decisão do STF, vai além, pontuando, com absoluta razão, que o delator deveria falar antes das testemunhas de defesa: “Considerando que o delator-corréu é talvez a mais importante 'testemunha' da acusação (ainda que seja uma testemunha sui generis, como mencionamos), é imprescindível que diga tudo o que tem para dizer (colaborando, portanto, com a tese acusatória) antes da oitiva das testemunhas arroladas pela defesa, para que existam - efetivamente - condições de possibilidade de defesa e de produção de contraprova”.
Voltando ao julgamento do supramencionado habeas corpus, a divergência ao voto do ministro Relator Edson Fachin, foi inaugurada pelo Ministro Alexandre de Moraes, que menos ousado do que Aury, entendeu que “o delatado tenha o direito de falar por último” e concluiu: “O devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório exigem que o delatado se manifeste após ter o pleno conhecimento de toda atividade probatória.”
Por outro lado, acompanhando o relator, o ministro Roberto Barroso, com argumento “ad terrorem”, pontuou que a decisão acabaria com todo trabalho realizado pela “lava jato”, prejudicando o combate a corrupção. Esta fundamentação está, visceralmente, em descompasso com a ordem constitucional, primeiro porque a anulação do processo determina a retomada do feito a partir do ato anulado e não sua extinção com a absolvição dos acusados. Segundo, porque o sistema constitucional processual penal preconiza, em tintas fortes, como direito fundamental do homem, que não pode ser abolido sequer por emenda à Constituição, que o exercício a ampla defesa e ao contraditório, apenas é efetivamente exercido quando o acusado tem irrestrito acesso aos argumento de acusação, o qual se incluem, inequivocamente, as declarações do réu-colaborador.
Dessa forma, o julgamento realizado pelo Supremo respeitou e deu efetividade aos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, dizer o contrário, com argumentos sem um mínimo de lastro jurídico, é rasgar a lei maior desse país. Para finalizar, cumpre trazer a à lapidar lição do juiz de Direito Luis Carlos Valois: “Quando o Judiciário passa a pensar que uma de suas funções é o combate à criminalidade, ele se afasta da posição de garantidor de direitos e liberdades para agir como mais uma arma apontada para a população”.
*Marcelo Aith é advogado especialista em Direito Público