O Supremo Tribunal Federal (STF) inicia, nessa quarta-feira (30/6), o julgamento que definirá o futuro das demarcações das Terras Indígenas (TIs) no Brasil. A Corte vai analisar a ação de reintegração de posse movida pelo Governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, referente à TI Ibirama-Laklãnõ, onde também vivem os povos Guarani e Kaingang. Em 2019, o STF deu status de “repercussão geral” ao processo, o que significa que a decisão servirá de diretriz para a gestão federal e todas as instâncias da Justiça no que diz respeito aos procedimentos demarcatórios.
Os ministros também vão analisar a determinação do ministro Edson Fachin, de maio do ano passado, de suspender os efeitos do Parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU). A norma oficializou o chamado “marco temporal”, entre outros pontos, e vem sendo usada pelo governo federal para paralisar e tentar reverter as demarcações. Na mesma decisão do ano passado, Fachin suspendeu, até o final da pandemia da Covid-19, todos os processos judiciais que poderiam resultar em despejos ou na anulação de procedimentos demarcatórios. Essa determinação também deverá ser apreciada pelo tribunal.
O “marco temporal” é uma interpretação defendida por ruralistas e setores interessados na exploração das TIs que restringe os direitos constitucionais dos povos indígenas. De acordo com ela, essas populações só teriam direito à terra se estivessem sobre sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Alternativamente, se não estivessem na terra, precisariam estar em disputa judicial ou em conflito material comprovado pela área na mesma data.
A tese é injusta porque desconsidera as expulsões, remoções forçadas e todas as violências sofridas pelos indígenas até a promulgação da Constituição. Além disso, ignora o fato de que, até 1988, eles eram tutelados pelo Estado e não podiam entrar na Justiça de forma independente para lutar por seus direitos.
O julgamento estava marcado anteriormente para 11 de junho, mas foi suspenso por um pedido de "destaque" do ministro Alexandre de Moraes, um minuto após começar. Os demais ministros sequer chegaram a depositar seus votos. Apesar disso, o voto do relator, ministro Edson Fachin, foi divulgado.
O julgamento será transmitido pela TV Justiça, com apresentação e debate dos votos. Não há garantia que seja concluído nessa data ou mesmo na sessão extraordinária, já marcada para o dia seguinte (1º de julho), porque os ministros podem pedir para avaliar o processo melhor, com um pedido de “vistas”, suspendendo-o e transferindo-o para uma data incerta.
A TI Ibirama-Laklãnõ está localizada entre os municípios de Doutor Pedrinho, Itaiópolis, Vitor Meireles e José Boiteux, 236 km a noroeste de Florianópolis (SC). A área tem um longo histórico de demarcações e disputas, que se arrasta por todo o século XX, no qual foi reduzida drasticamente. Foi identificada por estudos da Fundação Nacional do Índio (Funai) em 2001, e declarada pelo Ministério da Justiça, como pertencente ao povo Xokleng, em 2003. Os indígenas nunca pararam de reivindicar o direito ao seu território ancestral.
O que dizem os participantes do processo?
“A demora na demarcação das terras indígenas é muito preocupante. Porque, a cada tempo que se passa, se encontram grandes dificuldades para a demarcação de terra no Brasil. Os povos indígenas precisam ter reconhecidos seus direitos tradicionais. E nós gostaríamos que fosse julgada a repercussão geral, que fosse a favor, que não se falasse mais em marco temporal.”
Brasílio Priprá, uma das principais lideranças Xokleng
“A gente espera que o Supremo possa adotar uma interpretação mais justa, razoável, e que possa ajudar a efetivar direitos. E não mais utilizar, por exemplo, a tese do marco temporal, para limitar o reconhecimento de direitos a nós, povos indígenas... o que já vem acontecendo nos últimos dez anos. Mas também pode fortalecer a nossa luta nesse enfrentamento com os outros poderes, que utilizam do marco temporal como um critério para restringir direitos”.
Samara Pataxó, advogada da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib)
“A forma como o povo perdeu o território foi a forma mais violenta, mais vil, mais terrível. Houve, no início do século passado, a demarcação sem critérios técnicos. Perdeu-se, na década de 1920, parte significativa do território. Em 1950, a mesma coisa. Depois, a construção de uma barragem levou as melhores terras. E nesse contexto se dá a disputa do povo Xokleng, para que de fato seja garantida a devolução dessas áreas roubadas”.
Rafael Modesto, advogado da comunidade Xokleng e também assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Levante Pela Terra
Povos indígenas de todas as regiões do País têm se mobilizado contra a tese do marco temporal. Desde o dia 8 de junho, em torno de 850 lideranças, de 50 povos, estão mobilizadas no acampamento Levante Pela Terra, em Brasília, contra o avanço da agenda anti-indígena do governo Bolsonaro e da bancada ruralista no Congresso.
“O levante é um chamado da terra a todos os povos do Brasil para que nós mostremos para esse genocida quem são os verdadeiros donos da terra. Estamos em Brasília pela garantia dos nossos direitos originários e para dizer ‘fora Bolsonaro genocida, e seus projetos maquiavélicos contra as populações indígenas’”, afirma Kretã Kaingang, coordenador da Apib.
Nos territórios, há semanas os povos indígenas têm se mobilizado contra o “pacote da maldade” que tramita no Congresso Nacional, a exemplo do Projeto de Lei 490/2007, que abre as terras indígenas para a exploração econômica predatória e inviabiliza, na prática, novas demarcações. Nos “trancaços” de rodovias, rituais e rezas, os povos também se posicionam contrários à tese do marco temporal, que busca restringir os seus direitos constitucionais.