Recentemente, diversas operadoras de planos de saúde passaram a aplicar significativos reajustes nas mensalidades de seus beneficiários, justificando-os com base em altos índices de sinistralidade. Esse cenário tem gerado uma série de questionamentos e controvérsias, tanto por parte dos consumidores quanto por parte de órgãos de defesa do consumidor e entidades reguladoras. A principal questão que se coloca é se tais reajustes são justos e proporcionais, ou se configuram prática abusiva, onerando excessivamente os consumidores.
A sinistralidade é um indicador que reflete a relação entre as despesas da operadora com a assistência à saúde dos beneficiários e o total de receitas obtidas com as mensalidades pagas por eles. Ele é calculado com base nos custos que a operadora tem com consultas, exames, internações e outros procedimentos médicos, em comparação com o valor arrecadado através das mensalidades dos planos de saúde e, assim, tem sido usado para determinar a necessidade e o percentual de reajuste das mensalidades.
Para se compreender a influência que esse índice de sinistralidade exerce no percentual de reajuste dos planos de saúde, bem como todo o impacto que ele gera nos serviços de saúde, é imprescindível examinar as normas estabelecidas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e os dispositivos do Código de Defesa do Consumidor (CDC).
No que tange à regulamentação dos reajustes dos planos de saúde, dita a Resolução Normativa nº 309/2012 da ANS que eles devem ser baseados em critérios técnicos e atuariais, visando garantir a sustentabilidade dos planos e a continuidade da prestação dos serviços. A ANS estabelece limites para os reajustes, especialmente para os planos individuais e familiares, que são mais suscetíveis a aumentos abusivos. Por sua vez, a Resolução Normativa nº 441/2018 da agência reguladora prevê que os reajustes devem ser pactuados entre a operadora e a pessoa jurídica contratante, devendo ser baseados em fatores objetivos, como a variação de custos assistenciais e o índice de sinistralidade.
Para além das resoluções normativas da ANS, o tema também deve se pautar nos princípios do Código de Defesa do Consumidor (CDC). O artigo 6º do CDC estabelece os direitos básicos do consumidor, incluindo a proteção contra práticas abusivas e a obrigação de ser informado de maneira clara e adequada sobre os produtos e serviços contratados. O artigo 39, incisos III e IV, proíbe a elevação de preços sem justa causa e a exigência de vantagens manifestamente excessivas. Além disso, o artigo 51 considera nulas de pleno direito as cláusulas contratuais que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada ou que sejam incompatíveis com a boa-fé e a equidade.
Em que pese a ANS e o CDC terem dispositivos claros em defesa dos beneficiários de planos de saúde, existe um ponto relevante de choque com as operadoras, qual seja a metodologia empregada no cálculo da sinistralidade. É essencial que a operadora demonstre de forma clara, fundamentada e detalhada os critérios utilizados para calcular a sinistralidade, bem como o percentual de reajuste, considerando a legislação específica aplicável. Vale lembrar que a jurisprudência brasileira também oferece precedentes importantes sobre o tema. Por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já decidiu que os reajustes devem ser baseados em critérios objetivos e previamente definidos, e que a falta de clareza na comunicação dos índices de sinistralidade pode configurar prática abusiva, servindo como modelo para decisões judiciais semelhantes.
Outros dispositivos legais podem e devem ser levados em conta nessa aplicação do índice de sinistralidade para reajuste de mensalidades de planos de saúde. O princípio da transparência, previsto no artigo 4º, inciso III, do CDC, exige que os consumidores sejam devidamente informados sobre todas as variáveis que influenciam o cálculo do reajuste, incluindo a sinistralidade. A falta de clareza e a insuficiência das informações fornecidas pela operadora podem ser interpretadas como violação desse princípio, fortalecendo a argumentação dos consumidores na busca por revisão judicial ou administrativa dos reajustes aplicados.
Mais além, a Resolução Normativa nº 171/2008 da ANS, que estabelece o Índice de Reajuste dos Planos Individuais e Familiares (IRPI), determina que os reajustes devem ser justificados com base em dados financeiros e atuariais auditados. Isso significa que a operadora deve apresentar uma auditoria independente que comprove a veracidade e a precisão dos dados utilizados para calcular a sinistralidade e o percentual de reajuste. A ausência de auditoria ou a apresentação de dados inconsistentes pode ser questionada judicialmente pelos consumidores.
Os contratos de planos de saúde devem respeitar o princípio da boa-fé objetiva, conforme disposto no artigo 422 do Código Civil Brasileiro. A boa-fé objetiva impõe um dever de lealdade e transparência nas relações contratuais, exigindo que as operadoras de planos de saúde atuem com clareza e honestidade na comunicação dos critérios de reajuste. Qualquer prática que contrarie esse princípio também pode ser considerada abusiva e ensejar a revisão judicial do contrato.
Em relação à fiscalização e regulamentação pela ANS, é importante destacar que a agência possui o dever de monitorar e regular as atividades das operadoras de planos de saúde, conforme previsto na Lei nº 9.961/2000, que criou a agência. Sua atuação deve ser pautada pelos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, conforme disposto no artigo 37 da Constituição Federal.
Igualmente importante, cabe a cada operadora considerar a possibilidade de revisar suas políticas de comunicação e de transparência, adotando de forma permanente práticas mais claras e detalhadas na divulgação dos critérios de reajuste. A adoção de boas práticas de transparência pode contribuir para a construção de uma relação de confiança com os consumidores, evitando conflitos e litígios judiciais.
A fiscalização e a regulamentação por parte da ANS, somadas à transparência na comunicação dos critérios de reajuste e à conformidade com as normas regulatórias formam os pilares da boa e justa relação entre beneficiário e operadoras de planos de saúde, com a preservação tanto dos direitos dos consumidores quanto da garantia da sustentabilidade do setor de saúde suplementar.
*Natália Soriani é especialista em Direito da Saúde e sócia do escritório Natália Soriani Advocacia.