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Opinião

Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político.

Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político. Foto: Divulgação

Foto: Divulgação Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político. Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político.

Por décadas, a estratificação de classes no Brasil foi tradicionalmente representada por uma pirâmide social – ou triângulo – indicando a enorme desigualdade existente. Essa metáfora refletia uma realidade em que uma minoria concentrava renda no topo (classes A e B) e a vasta maioria de baixa renda compunha a base larga da sociedade. No início dos 2000, cerca de dois terços da população brasileira encontravam-se nas classes D e E, as faixas de menor renda. Em contrapartida, as classes de maior renda (A/B) continuaram a representar parcela pequena da sociedade.

Essa estrutura piramidal estava associada a altíssimos índices de desigualdade de renda. Indicadores, como o coeficiente de Gini, mantinham-se em patamares elevados; isto é, raros indivíduos conseguiam ascender da base para níveis acima. Nas décadas finais do século XX e início do XXI, predominavam as classes baixas; a classe média era relativamente pequena e a elite econômica restrita a poucos. A partir dos anos 2000, especialmente entre 2003 e 2014, o Brasil experimentou significativa mobilidade social. Diversos fatores contribuíram para esse fenômeno: estabilidade econômica pós-Plano Real, crescimento do emprego formal, valorização do salário-mínimo, ampliação do crédito e programas de transferência de renda (como o Bolsa Família). Como resultado, milhões de brasileiros saíram da pobreza e ingressaram na classe média. Estima-se que 42 milhões de pessoas ascenderam à chamada classe C nesse período compondo a chamada "nova classe média”.

Essas transformações alteraram o formato da distribuição de classes. A tradicional pirâmide social deu lugar a um losango; o meio da estrutura (classe C) inflou e passou a abrigar a maioria da população. Em 2024, as classes médias (A, B e C) representavam 50,1% dos brasileiros, sendo o maior contingente populacional do país, um pouco acima do índice do contingente populacional das classes D e E (49,9%). Há 10 anos, esse índice era de aproximadamente 53%–56% da população, sendo, na época o estrato majoritário. Como se vê, a base tem diminuído proporcionalmente: o percentual somado das classes D e E (49,9%) caiu para em torno de 25%–30%, deixando de ser mais da metade da população como fora nos anos 90. Também o topo se ampliou um pouco, com classes A/B chegando a cerca de 20% da população em alguns levantamentos – reflexo de que muitos brasileiros melhoraram de renda e passaram a integrar estratos mais altos.

Em 2003 (esquerda), prevalecia o modelo piramidal: uma base larga de 49% da população nas classes baixas (D/E), uma classe média relativamente menor (38% da população, classe C) e um topo estreito (cerca de 13% nas classes A/B). Já em 2015 (direita), observa-se um losango social: a maioria (56%) no centro como classe média, enquanto topo e base ficaram equivalentes (22% cada).

O auge dessa estrutura em losango ocorreu no começo dos anos 2010, quando o Brasil viu a "classe C" tornar-se protagonista. Observava-se otimismo no mercado interno, impulsionado pelos novos consumidores oriundos dessa classe média emergente. Estudos da época destacaram que a histórica pirâmide social brasileira havia se transformado num losango, com o centro ocupando o maior contingente populacional. Em outras palavras, por volta de 2010-2014 o Brasil tinha menos pessoas na pobreza extrema, muito mais gente na classe média, e uma elite um pouco menos exclusiva – um formato próximo ao de um losango, em que topo e base são relativamente estreitos em comparação ao meio da figura.

O cenário de crise, a partir de 2015, reverteu parte dos ganhos sociais obtidos na década anterior. O desemprego aumentou, a renda média caiu e muitas famílias da então nova classe média perderam poder aquisitivo. Consequentemente, milhões de brasileiros que haviam ascendido à classe C caíram de volta para as classes D. Entre 2015 e 2017 cerca de 10 milhões de pessoas da classe C regrediriam para as classes D/E, praticamente anulando grande parte da mobilidade ascendente registrada entre 2006 e 2012.

Em 2014, as classes D/E correspondiam ao menor percentual histórico, cerca de 47% da população.  Essa proporção voltou a subir em 2015, alcançando 51% em 2016. Mais da metade dos brasileiros retornou à condição de baixa renda, reconfigurando a estrutura social para um formato mais próximo de uma pirâmide. Ao mesmo tempo, a classe C encolheu em tamanho relativo, deixando de ser a maioria absoluta. Esse movimento continuou ao longo dos anos seguintes. Em 2017 e 2018, as classes D/E permaneciam em torno de 50% da população, evidenciando a persistência de uma grande base de renda baixa.

A crise fiscal e os ajustes econômicos reduziram investimentos em políticas sociais, enquanto a lenta recuperação do PIB manteve o desemprego elevado. Em 2020, a pandemia de COVID-19 atingiu duramente a economia, derrubando a renda de milhões de trabalhadores informais e precários. Embora medidas emergenciais (como o auxílio emergencial) tenham amenizado temporariamente a pobreza em 2020, seu efeito foi passageiro. Em 2021, com a retirada parcial desses auxílios, a situação dos mais pobres voltou a se deteriorar. Dados desse período mostram que as classes D/E ainda representavam cerca de 51% dos domicílios brasileiros em 2021 – praticamente o dobro da participação das classes A e B somadas. A "base do triângulo" voltou a se expandir na segunda metade da década de 2010, indicando um retorno a um perfil mais desigual após o breve interlúdio do losango.

A estrutura social brasileira em 2022 mantém um caráter bastante desigual, com a base da pirâmide ainda maior que o topo. Aproximadamente 50,7% dos domicílios estão hoje nas classes D/E, ou seja, englobam mais da metade da população de baixa renda, ao passo que apenas 16% (aprox.) encontram-se nas classes altas A e B. A classe média (classe C) constitui cerca de um terço da população (33%) – ainda significativa, porém aquém do nível verificado no auge da nova classe média anos atrás. Em outras palavras, o topo da distribuição continua bastante estreito comparado à base, e a maioria dos brasileiros se concentra nas faixas de renda média-baixa ou baixa.

Esse quadro indica que a metáfora do losango social já não representa fielmente a realidade atual. O losango pressupõe topo e base de tamanho semelhante e uma maioria no centro; hoje a base permanece proporcionalmente mais larga que o topo, destoando de um losango simétrico. Somente por volta de 2028 a proporção de brasileiros nas classes D/E retornaria ao patamar de 49%, o melhor da série histórica). Portanto, no cenário presente e próximo, a estratificação social brasileira se assemelha mais a um triângulo ou mesmo a uma "Pêra", com topo afunilado e base larga.

*Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político.