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Cotidiano

Foto: Ricardo Stuckert

Foto: Ricardo Stuckert

A crise humanitária envolvendo o povo Yanomami levou o Governo Federal a adotar medidas de proteção àquela população. Dentre elas estão procedimentos de acesso à Terra Indígena. Uma portaria assinada pelo presidente Lula (PT) e publicada no início deste mês determina que todas as autorizações de acesso ao TI Yanomami sejam reavaliadas pela Funai.

A medida também estipulou regras de acesso ao território com a finalidade de resguardar os Yanomami durante o período de enfrentamento da crise humanitária. O território de 10 milhões de hectares fica entre os estados do Amazonas e Roraima e abriga cerca de 30 mil indígenas, incluindo grupos isolados, vivendo em 371 comunidades.

A ação de garimpeiros na região, que se intensificou durante o governo de Jair Bolsonaro, provocou a proliferação de doenças entre os Yanomami, como a malária. No início desta semana, mais quatro indígenas que estavam internados em Boa Vista foram levados em caixões para sua terra natal para serem sepultados.

Entretanto, o garimpo não é a única atividade que tem ameaçado a existência dos indígenas. O antropólogo André Luís Lopes Neves explica que, além do genocídio – extermínio total ou parcial de uma comunidade, ocorre também o chamado etnocídio, que é a destruição da cultura de uma etnia por outros grupos que, geralmente, impõem seus costumes. “É uma prática antiga. Desde o início da colonização das Américas quem teve o papel de se relacionar com os povos indígenas foi sempre a igreja. A relação do Estado com esses povos, sobretudo no Brasil, não era direta e o catolicismo exerceu esse papel opressor por meio das missões, como as Jesuítas, que tinham como objetivo catequizar novas gerações e dissociá-las de suas ancestralidades. Esse é o processo de etnocídio”, explica.

O proselitismo religioso no TI Yanomami é uma das práticas atacadas na portaria do Governo Federal. Para impedir que grupos religiosos adentrem no território e imponham suas práticas, a portaria proíbe o exercício de quaisquer atividades religiosas junto aos povos indígenas, bem como o uso de roupas com imagens ou expressões religiosas.

“Quando se fala na presença de missionários e religiosos em terras indígenas, geralmente estamos falando de igrejas protestantes neopentecostais que têm uma postura muito proativa de conversão de novos fiéis que é uma prática que vai contra os direitos dos indígenas. O proselitismo religioso é uma agressão às cosmologias desses povos, porque o que vão dizer é que esses seres não existem ou, se existem, seriam a presença do mal, ou seja, do demônio. E isso é uma agressão porque eles têm o direito de ter seus conhecimentos e práticas sem esse tipo de interferência que é preconceituosa e discriminatória”, afirma o antropólogo.

A coordenadora do Conselho Indigenista Missionário Goiás/Tocantins, Eliane Franco, lembra que, muito embora caiba aos indígenas a decisão sobre quem pode entrar em seus territórios, muitas vezes é preciso que o poder público adote medidas de restrição. “A portaria foi necessária para impedir que grupos religiosos entrem na comunidade para se aproveitar dessa situação de fragilidade. Legalemente, a Constituição Federal permite que os indígenas deixem entrar quem eles quiserem, porque são donos do território, mas em casos de emergência, pode-se impedir a entrada de determinados grupos no território indígena”.

André Luís chama atenção também para o fato de que, embora a Funai já adote a diretriz de proibir o proselitismo religiosos nos territórios indígenas, a atuação missionária com objetivo de conversão dos povos ainda é uma realidade. “Um exemplo é o Summer Institut of Linguistics (SIL), formado por missionários norte-americanos que vinham muito à Amazônia para atuar junto às comunidades indígenas. A estratégia de conversão deles era a tradução da Bíblia para que essas populações tivessem acesso ao livro em sua própria língua. Isso também é uma forma opressora de conversão porque esses missionários proibiam muitas práticas, como formas de casamento indígenas”, alertou.

A missão de converter indígenas ao cristianismo se utiliza de estratagemas. “Essas religiões fazem a cooptação de lideranças e criam uma série de relações e redes de trocas que tornam muito mais difícil tirá-las das aldeias”, ressalta André. “Essas religiões, em seu discurso oficial, nunca vão ser contra a cultura indígena. O que elas dizem é que apoiam a cultura, como se fosse só pintura, danças, cantos e histórias, mas é muito mais que isso. Cultura é modo de existência, incluindo aí as conexões que esses povos fazem com seus mortos ou os espíritos que cultuam. Aí então temos, num primeiro momento, a demonização da cultura, e num segundo momento, a proibição das práticas tradicionais desses povos”, alerta.

Para o pesquisador, o Governo Federal acertou ao limitar o acesso ao TI Yanomami. A extensão dessa proibição a outros territórios, no entanto, esbarra na autonomia dos povos indígenas para decidir quem pode ou não entrar em suas terras. “A proteção do Estado tem que ser mais forte junto a esses povos que ficam vulneráveis às instituições religiosas que são verdadeiros lobos em pelo de cordeiro. Entre os povos que já têm muito conhecimento do Estado Nacional e já tenham anos de relacionamento com não indígenas, é natural que eles próprios tomem essas decisões”, encerrou.''