Ler talvez não seja o comportamento mais usual, sobretudo quando os índices oficiais de leitura mostram seu grau incomum. Na contramão da falta da leitura, muitos já ouviram: “ler dá asas à imaginação”, “a leitura abre novos horizontes” etc. Ler é, para quem pratica, um método de aquisição de conhecimento de toda natureza, da histórica à linguística, da filosófica à espiritual, entre outras. Em direcionamento complementar, ler também é um ato de fruição, já que proporciona uma forma de diversão ativa. Contudo, como é possível explicar, sem academicismo, o que é a leitura e quais seus dispositivos interpretativos envolvidos?
A leitura, como um complexo jogo esquemático, dá-se sob a intencionalidade de quem já depreendeu o conjunto alfabético de uma determinada língua e sabe quais combinações de letras/fones formam certos significados. Quem já domina o sistema da língua passa a identificar significados organizados, indo além da simples leitura de palavras. Os significados, por sua vez, são frequentemente encadeados no fluxo linear da produção de sentidos, isto é, na sentença, uma vez que essas são agrupadas em novas associações de sentenças e assim sucessivamente até o término de um texto (independente do gênero textual: romance, artigo científico, poesia etc.). Eis que o leitor proficiente já não se preocupa com o aspecto meramente linguístico envolvido no ato de ler, porque entende que o processo de decodificação serve à interpretação. Em outras palavras, não se lê letras/fones, palavras, mas, sim, sentidos que são interpretáveis. Poderia ser diferente?
Agora, sim, é possível divertir-se ou adquirir qualquer tipo de saber por meio da leitura.
Ler, quando não se tem que fazer cálculos para compreender o vocabulário, é um dos meios de diálogo à distância que mais aproxima. É exclusivamente a partir da leitura que se pode dialogar com Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino e com praticamente todos os pensadores. É uma forma de ensino a distância sem tempo limitado para acontecer, claro, se a leitura for empregada para aprender. Para não ficar pairando no ar a impossibilidade de ler autores contemporâneos, a recomendação dos clássicos não deve excluir a leitura de obras recentes. Qual sua última leitura?
Já para quem gosta da possibilidade de conhecer novas paragens, antigos cenários, personagens com densidades psicológicas distintas, a leitura é um verdadeiro oceano. Ler, com a finalidade de construir imaginariamente todo um “mundo”, é, entre outras coisas, fantástico. Também não se pode excluir do universo literário aquilo que pode causar algum enfado, mas, sem dúvidas, experiência de leitura (e de vida). Para quem quer ter acesso a um romance marcado por um trajeto relativamente incomum (para os dias de hoje) de experiência amorosa, leia “Amor de perdição”, de Camilo Castelo Branco. Mas quem deseja uma experiência mais afeita ao idealismo, leia “Amor de salvação”, também de Camilo Castelo Branco. Quer dizer que ler romances, para além de outras leituras, é uma prática de aprendizagem? Sim!
Quando se incorpora uma trama, com seu conjunto simples ou complexo de personagens, lê-se como a própria experiência humana é organizada. Isso não significa que toda leitura pode trazer o benefício de acréscimo experiencial, mas, antes, que toda complexidade projetada na leitura, por exemplo, de um romance, presentifica aquilo que já aconteceu, aquilo que está ocorrendo ou que pode suceder. Portanto, a criação imaginária, que ultrapassa o universo linguístico, fica a cargo do leitor. Assim, seu mundo interno expande-se para preencher tanto o que não é visto (mas percebido) na leitura quanto seu próprio conjunto de experiências. Quem lê não apenas sabe decodificar um sistema linguístico, sabe o potencial que tal “instrumento” possui para a vida, uma vez que reconhece mais uma das vias de compreender o mundo, mais uma das vias de reproduzir o mundo, e, principalmente, mais uma das vias de experienciar com segurança o mundo.
Ler é, portanto, criar. Criar sentidos, criar mundos, criar versões do que se conhece e de si. A leitura, quando vivida em profundidade, não apenas informa ou entretém, ela transforma. Por isso, ler e criar não são apenas práticas necessárias, mas dimensões indissociáveis do pensamento livre e da imaginação ativa. Em tempos de superficialidade e dispersão, quem lê, e cria, resiste.
*Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da Universidade Federal do Tocantins.